edição 29 | agosto de 2008
temas:  ponto g | deus & diabo

 

2 poemas
santa maria
   

orgasmos suicidas

 

O pedaço de espelho que lhe cortou o pulso

refletiu pela última vez o seu rosto,

em meio ao orgasmo e ao susto.

 

Apanhou o revólver e gozou a beça,

antes de apertar o gatilho,

mirado contra a cabeça.

 

O veneno se espalhava dentro do peito,

ao suspirar de prazer,

a mulher saciada sobre o leito.

 

Subiu no alto telhado da casa,

abriu os braços e se lançou

ao vôo em êxtase e sem asa.

 

Sem nenhum rancor,

morreu conhecendo o sexo,

a virgem atacada pelo estuprador.

 

 

 

 

discussão inferno-celestial

 

— Eu sou o criador! — gritou Deus.

— O criado sou eu! — gritou o Diabo.

— Vocês é que pensam! — sorriu a criatura.

 

o ritual da nudez,
após o banho de sais

(o ponto g de uma senhora recatada)

shânkara lis

 

Para iniciar o ritual da nudez, a Senhora retorna ao quarto, após o banho de sais, envolta numa toalha branca. Para entenderes bem o que é o céu na alma, observe primeiro o modo como ela se desnuda. Eu obedeço, dando ao rosto o maior  interesse possível, enquanto a senhora deita na cama e acaricia as pernas com óleo de amêndoas.  Acaricia, também, o Ponto G, com sabonete de gérbera.

Confesso que foi no verão a primeira vez que vi a Senhora, no Café Graben, que era então o único lugar onde se podia observar, pela imensa janela transparente, as pessoas que andavam na rua. E elas todas iam ao açougue, à Botica da Erva Santa ou ficavam nos bancos no Largo do Paço.

No Café Graben eu tinha fome, muita fome, porque não havia comido nem uma folha de alface nem bebido um copo d'água sequer. A Senhora entrou de longo chapéu azul, como se usava naquela época, e sua nuca muito branca foi o que de imediato me chamou atenção. Ela se sentou próxima de gordas senhoras, nas suas ricas vestimentas que, ao fundo do Café Graben, faziam barulho com o garfo e a faca e davam com a língua nos dentes sobre um assunto ou outro, sempre banal.

No momento em que a Senhora se levantou para ir ao banheiro, eu fui atrás, um pouco encharcado de vodca, confesso, e aconteceu dela se espantar quando o animal que há em mim arrancou cada peça de sua roupa e ali a Senhora ficou, no meio do banheiro, com a nudez branca e um tufo de pêlos negros entre as coxas. Confusão? Tumulto? Nada disso. Ela colou seu corpo no meu e fiquei durante minutos passando a língua nos ombros, nos quadris, no púbis, com a intenção de secar a chuva que nesses lugares havia se acumulado.

Depois que saímos do banheiro do Café Graben, a Senhora foi levada em braços para a Botica da Erva Santa, veio o farmacêutico, era noite; a Senhora tinha a cabeça rachada e, da fenda de sua cabeça tentava sair, com dificuldade, um pássaro azul com garras afiadas que bateu asas, singrou ao telhado de um casarão próximo.

Dali do interior da Botica da Erva Santa pude fazer sinal a um tílburi que por ali passava; e retornamos, eu e a Senhora, ao sobrado onde ela residia.

O tílburi, no meio do caminho, atropelou uma menina de 12 anos. Eu escutava a respiração da menina, com a alma nos olhos, incapaz de desvendar sequer um resquício de sua breve existência. O dono do tílburi fugiu e nunca mais foi visto.  

Por muito tarde que chegássemos ao sobrado da Senhora, não estávamos com sede, ela adormeceu e a coloquei na cama. 

Enquanto ela afundava a cabeça no travesseiro, meditei sobre esse princípio indestrutível: a uma água de chuveiro nunca se destroça e o sabonete de gérbera da Senhora continua lá, abandonado, no ladrilho do banheiro. Assim chamo de incorruptíveis às águas fortes dessa ducha; e porque os cabelos da senhora esquecem sombras no tapete, eu a chamo de rainha da Babilônia e quando o céu é alto eu digo: eis a respiração da rainha. .

 

 

3 poemas
valéria tarelho

(e)lance

 

talvez resultado

de um jogo de dados

entre deus e o diabo

 

talvez de um pacto

entre o sacro e o profano

nasci em você

[de chofre]

lúbrica e pura

:

misto do

casto e castigo

logro e lisura

 

a sugar teu sangue

a sonhar teu sono

a simular teu gozo

 

 

 

 

ânima e (lág)rima

 

fui criada ao acaso

em meio a uma crise

de insônia

(maybe um orgasmo

de insânia)

 

posso ser um último ato

(sem direito a reprise)

algo límpido

algo lúcido

implícito no desatino

de um deus-menino

(perhaps algo sujo

no jato do gozo

de um diabo adúltero)

 

possuo fases de lua

— inúmeras faces —

repousa em meu peito

um vulcão dormente

— que no leito irrompe —

cúmplice do vento

sou o disfarce que ele ousa

e quando caio das nuvens

desmancho em magma

 

(talvez não passe de um dueto

entre inferno

e firmamento

 

quem sabe poesia humana

refém saída da lama

à superfície da alma)

 

 

 

 

porno gráfica

 

nasci

de um pingo [bêbado] no i

que, trôpego, foi ao chão

e gerou ponto

de exclamação

!

quem me vê assim

ereta & sóbria

equilibrista

da esquina do zelo

ignora dois pontos

:

prostituo a escrita

masturbando egos

pelos becos do verso

 

e bebo todas

pra esquecer os erros

que, ato contínuo, vomito

via meus dedos

 

[não nego que gozo

quando escrevo]

 

 

 

compartilhar: