edição 28
| julho de
2008
"worn like a mask of self-hate, Confronts and then die" (Joy Division)
Ela acende aquele que é talvez o último cigarro do maço. Traga devagar. Se ao menos pudesse esquecê-lo agora, nesses poucos minutos do amor sujo e depois do amor sujo... mas ele sempre ficava nos pensamentos dela... quando tomava banho, ele estava lá... quando escovava os dentes, ele estava lá... quando acordava, ele estava lá... quando dormia, quando sorria, quando urinava, quando cozinhava, quando pintava as unhas (sempre de vermelho), ou penteava os cabelos, ele estava lá, ele sempre estava lá, dentro dela, como se fizesse mais parte dela do que ela mesma. Olhou pras paredes verde-escuras do motelzinho. Olhou pras costas do homem que dormia. Sentiu asco. Olhou pras suas mãos brancas, quase invisíveis, atrás da fumaça do cigarro, sentiu nojo também das próprias mãos. Estava velha. Estava suja. E não conseguia esquecê-lo por um segundo sequer. Nem essa sua vingança fazia sentido, ou diminuía sua dor... cabelos longos, loiros, de mulher, de mulher jovem, perdidos no carro dele... estaria num motel também? E o que é pior, gozando. Gozando com aquele sorriso lindo arreganhando-lhe descaradamente a boca? Ao imaginá-lo gozando, sua garganta fechou, não conseguia respirar, a nicotina toda presa, dentro do corpo dela, tentou soltar a fumaça e puxar o ar, mas não conseguiu. O Homem, inútil, continuava imóvel, do lado dela, bateu com todas as forças nas costas paradas... e nada.... nem se mexeu... estaria morto? Morto como seu irmão gêmeo, dele, que do mesmo modo não tinha conseguido fazer com que ela esquecesse o marido... correu pro banheiro... o rosto vermelho, inchado, deformado, no espelho. Tomara que não conseguisse mais respirar mesmo... tomara que morresse logo de uma vez por todas... abriu a torneira... jogou água no rosto... tossiu... a nicotina saiu marrom, molhada, cheia de saliva, parecia uma lesma no fundo da pia branca... lavou melhor o rosto... tocou com a ponta dos dedos a raiz dos cabelos, completamente brancas... por cima havia a tinta negra... mas lá embaixo... no fundo... por dentro... estava tudo branco... quando ela tinha perdido a graça? Em que ano começaram a chamá-la, constante e efetivamente de senhora... 1984? 1985? 86? Estendeu as mãos... baixou os olhos sobre elas... eram mãos de velha... enrugadas... até mesmo o esmalte começava a descascar na maioria das unhas, pra dizer a verdade ele, o esmalte, mal cobria a camada de cutícula... no chão, um pouco abaixo das mãos, uma fileirinha de formigas minúsculas se movimentava como se fosse um risco, um verme fino, uma coisa só... só o que? Só sentiu foi as formigas roçarem-lhe os pés, entrarem por baixo das unhas, subirem pela perna, por baixo da pele, pelo ventre, pelo sexo, pelos seios e braços... milhões... trilhões de formigas pelo corpo todo... e ele longe... tratando de negócios? Bebendo um café olhando os seios da garçonete? Comentando com algum amigo a respeito de uma secretária bunduda qualquer... ela nem tocava mais violão! Quantas vezes ele teria feito amor com ela pensando em outras mulheres? Outras mulheres bem burras e bundudas e com seios rijos e grandes? Diabo, e ela nem tocava mais piano... se tivesse um pincel, teria pintado de vermelho a casa inteira, o mundo inteiro, a manhã inteira... mas não tinha um pincel... e ele, o marido, estava longe... e ela, ela mesma, jovem e encantadora, estava longe... impossível... bateu com a cabeça no espelho... quebrou-o... em muitos pedaços... que caíram no chão. Uma linha fina de sangue cortou-lhe a face, como se a partisse em duas... desiguais... uma lágrima lenta cortou uma dessas partes... era como se seu rosto estivesse partido em três fragmentos... uma máscara desigual de dor... correu outra lágrima distante dali, do outro lado do rosto e partiu-o em quatro... ela tocou a vagina... massageou-a.... pensou no marido... trepando... com alguém invisível... que não era ela... sentiu-se molhada... cheia de água... um lago... abriu com os dedos a parte de cima... ficou massageando aquela coisinha dura... pequena... insignificante... quando sentiu que aquilo estava bem rígido, pegou um dos cacos do espelho. E era bastante pontiagudo, o caco.
Lucía Lopez nasceu em 1979, é veterinária e escreve ocasionalmente para pequenos jornais do interior do Amapá. Pretende lançar, ainda este ano, um livro de contos, sem título definido até o momento. Prefere os bichos aos homens. Não enxerga muito bem.
os quatro cavaleiros "Dez minutos atrás, foi como uma premunição. Dois moleques caminharam em minha direção. Não vou correr, eu sei do que se trata. Se é isso que eles querem. Então vem, me mata". ("Tô ouvindo alguém me chamar", Mano Brow)
157. Mal o dia amanhecera e eu enxerguei o primeiro cavaleiro. Primeiro me assustei — os homens maus costumam se assustar por quase nada. Imaginei que fosse um daqueles delírios provocados pela raiva. Nessas horas gafanhotos saíam da minha boca. Não, não era. Vinha vestido de branco, trazia um chapéu de feltro na cabeça e um 38 na cintura. Sua cara tinha a fúria dos assassinos que já sentaram à minha mesa, já compartilharam do meu ódio, já vomitaram do meu pão. A guerra começara. Pôsteres de mulheres peladas se misturavam ao cheiro de mijo, café e carne crua. As paredes testemunhavam promessas de vingança. Camisetas e cuecas sujas esbarravam nos meus pensamentos: as grades, os cavalos, o tiro, a faca e o resto da merda toda que me colocou aqui. Poluem a minha mente meus inimigos de escola, os sempre foda, os sempre bons e eu sempre no fundo do poço remendando rancores velhos e recentes com linha imprestável. "Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. / E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil". O dia está claro, ofuscante e os ponteiros do relógio riem sarcásticos da minha cara de idiota. Embora aqui seja tudo tão imundo, eu sei que lá fora o sol queima o câncer de algum suicida. Os cavalos brancos me perseguem. Agora os párias brigam por restos, lá fora eu podia colher do pé frutas de mil reais, aqui eu espero a luta parar e recolho as migalhas. Não ligo pra eles, não os encaro, é arriscado demais. 157. Se não fossem os números já teria saído. O julgamento já teria acabado. O sol se põe, adivinho pelo barulho dos ratos, eles preparam-se para sair das tocas. Esfreguei os olhos com os punhos fechados. Inútil, ele insistiu em aparecer, não pude fazer nada. Corpos suados e fedorentos aglomeravam-se ao meu redor. Era o segundo cavaleiro. Galopava coberto de sangue e vinha em minha direção. Trazia na mão esquerda um canivete. Alguns homens são fracos e corruptíveis. Meu corpo tremeu, não era medo do corte, era preguiça da luta, era nojo da lama do vale dos mortos. 157. O inferno batia à minha porta. Cabala, mau presságio. É preciso saber ler os sinais. O rosto era anguloso, disforme. Tentei segurá-lo, abocanhei o seu braço musculoso, entretanto ele era forte demais. Caí, o canivete entrou entre minhas costelas, encostou-se em um dos meus rins. Apaguei. A noite chegou, estava com a boca seca e amarga, era preciso beber, mastigar, rasgar um pedaço de uma coisa qualquer. Passavam um algodão molhado na minha boca. Queria socá-los, não podia, estava amarrado. Estava com fome e uma sonda enorme invadia meu corpo. Foi nessa hora, por volta das 11 da noite que eu avistei o terceiro cavaleiro. Ele vestia um terno negro e trazia dois soros, um em cada mão. Minha fome aumentava. Ele soltava gargalhadas. Ele parecia pesar meus pecados e contabilizá-los. 157. Esse é o número da minha desgraça. A madrugada estava no fim e ainda não tinha dormido. Meu corpo queimava como brasa. Litros de suor e remorso atravessavam minha pele. O corte fedia, estava coberto por um líquido amarelo-esverdeado, uma espécie de decomposição precoce. Entrei em estado de delírio. Foi então que toquei meu dedo no quarto cavaleiro. Ele virou-se e pude ver seu rosto desfigurado. Era chegada a hora. 157. Esse foi o número do meu destino.
Márcia Barbieri. Formada em Letras (Português/Francês) pela UNESP, participa do Curso de Mestrado em Literaturas Africanas na USP. É professora de Língua Portuguesa na Rede Estadual de Ensino. Ministra aulas particulares de Língua Francesa e faz revisão de textos. Edita o blogue Minha Vida Não Vale Um Conto.
samsa Eu poderia dizer tudo falar todos os meus palavrões o caos que você colocou na minha vida e no meu corpo. Mas o caos eu permiti, eu mesma permiti o caos e a doçura dos teus braços, assim, como uma tonta que se entrega ao príncipe que nunca existiu. Vejo agora esta barriga inchando de dor e prazer, uma loucura, as minhas pernas moles, os meus dentes rangendo de raiva e de ausência. Porque eu sinto as patinhas se movendo, as asinhas roçando aqui por dentro, porra, eu sei. É você crescendo dentro de mim, mas isso não é amor, nunca foi, é apenas a desorganização do corpo, o caos da boca e dos arrepios. Lembro ainda das tuas asas, dos teus olhos quentes. Lembro mais que eu perdi o controle, eu, sempre tão centrada, os pingos nos iis, uma mulher com o mundo aos seus pés. Aos meus pés agora restam apenas o inchaço e o calor, as patas de elefanta. Mas eu quis, ah!, como eu quis... E foi como abrir a janela para a tempestade. Uma ventania, você, suas asas espalhando papéis no meu quarto, levantando os lençóis, o sopro sedutor. Hoje considero tudo isso um nojo, você um nojo, jamais outra vez. Mas levarei tudo até o fim, ainda me resta um pouco de vergonha na cara, essas tuas patinhas fazendo cócegas na minha barriga, essas asinhas que vão se abrir em breve e partir em busca de outra como eu, outras. Mas não pense você que eu vou dar ao inseto o nome de Gregor Samsa, como você quer. Virgínia Flores é antropóloga mas preferiu estudar o crescimento dos filhos. Entre uma mamadeira e outra costuma escrever contos. Separada, mora em São Paulo há 34 anos. A loucura que vê pela janela do apartamento ela transporta para o papel. E pelas baratas não sente nojo algum, nem asco. É apenas fascínio, que não sabe e nem pretende entender.
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