edição 28 | julho de 2008
temas:  inseto | caos

 

2 contos
assionara souza
  

presságios

 

Antes do tempo estou lá, à espera. À espreita de uma realidade hipotética. Os dados jogados no tabuleiro. Previsibilidade dentro do imprevisível. E o que pode acontecer é não acontecer. Dirijo-me cegamente ao imprevisível. Mil pensamentos antecedem o talvez. Imaginar antes é uma inútil ansiedade. Imaginar olhos e mãos escrevendo uma dedicatória no livro comprado em usados: "Que a literatura jamais contamine o seu amor". Imaginar depois uma viagem para um país distante do país Brasil é tristeza e saudade e vontade de reter o que já escapou. Tudo é instável dentro do avião.

A criança ao meu lado baba o ombro esquerdo da mãe com a ansiedade dos dentes por nascer. No tempo em que ela afasta e aproxima a boquinha vermelha, uma mosca pousa e distancia-se do local repetidas vezes. A mordida molhada e sem dentes não é uma sensação que percebo e gosto. Por causa da mosca. Mas quem estivesse de frente para a mãe, perceberia somente sua boca aberta recebendo das mãos do marido um comprimido como se uma hóstia. A mãe parece infinitamente triste. A criança vai crescer e certamente não estará pronta para receber o amor cego do mundo tanto quanto está agora. O tempo é velho e sem mãe. Não ama.

O garoto na poltrona ao lado veste verde e tem vontade de entender porque tanta solidão numa só tarde. Distrai-se com eletrônicos que não trazem qualquer alegria e acentuam mais ainda a ansiedade. A realidade provisória. Se houvesse música seria possível deslizar. As vozes perpassam umas as outras sem peso, como pequenas mariposas que circulam na luz do poste em frente à casa simples em que os pais do garoto nasceram. Insetos fadados à morte breve e sem memória.

Os dados caem no pano verde da mesa. Vejo chegar a imagem que temo sempre. O espaço se imobiliza. A imagem tem muito poder. E tem muito sentido. Além das vozes. Além das outras visões. Move-se diante dos meus olhos. O meu olhar é insuficiente. A imagem chega e tem forma e pensamentos. A geometria dentro da aeronave se reconstrói. O momento está a ponto de ser gravado. Os meus sentidos fazem o cálculo da imagem. Lembro que na mesma tarde falei ao telefone com a amiga. Lembro que a fragilidade comoveu meu coração. Cortar delicadamente o corpo para que se tenha a impressão de que tudo foi feito para evitar o pior. Cortar e ver dentro da carne se não há ali algo que possa crescer e impedir planos futuros. Tenho diante dos olhos a imagem. A imagem me corta com sua lâmina de ausência. Fere a carne de meus pensamentos e desmorona um cenário preparado com antecedência. De repente sombra. E de repente nuvens densas. Não mais córrego e sim ferrugem de encanamento antigo. Sou a água escura que desce obediente ao comando de uma qualquer torneira aberta. Lembro que a voz da amiga pareceu frágil e forte na mesma proporção. O que eu quero da imagem não depende de mim. Não depende porque não tenho a chave. Não depende porque a palavra é menos que corpo. Não depende porque tudo à volta continua indiferente a minha vontade. Tudo à volta é indiferente ao que eu chamo de realidade. Na sala de cirurgia, um médico jovem prepara-se. Uma foto, por favor, para usar no filme da formatura! A mãe é séria e não sorri. Espanta-se com a mosca morta no canto da boca da criança. Minha cabeça oscila entre o lado interno e externo da imagem. Não faz sentido fingir que não presenciei a cena. A seqüência é simples. Uma vida pessoal escorrendo por um cano insignificante de toda a grande tubulação. Uma vida pessoal que pode viver sem o luxo da opinião alheia. E que não deixa de sentir nem por um dia o sol e o vento e o frio e a chuva. E se emociona apesar de toda a estrutura indiferente ao seu redor. A narrativa dessa vida pessoal é flagrada por mim. O jovem médico dentro do tempo marcado abriria a carne na altura do coração onde a realidade é mais sentida. Nunca aceitei que rissem de coisas tristes. Nunca suportei estúpidos julgamentos. Eu diante da imagem que parecia para mim ter a força de um presságio. E por isso me atingia por dentro como um corte na carne anestesiada. Tento me concentrar no fluxo do tempo que corre por fora. E retribuo a mudez do olhar. Penso que sou todos os que passaram por mim. E a realidade é essa conexão do que está fora: enquanto eu olho a imagem; e do que está dentro: presságios. O corpo na mesa de cirurgia. Fecho os olhos. Estou do lado de fora. O barulho intenso e a velocidade existem sem mistificação.

 

 

 

em linha reta

 

Vamos convidar os mortos para uma grande orgia. Com os vivos não. Nos levam direto ao inferno. Grito em sussurro constante o nome da rainha. Espero que ela me encontre numa dessas esquinas. E me reconheça. Estou praticamente pronta.  Desdenho com tamanha agilidade as coisas mais consideradas sérias. E capricho no ponto do estilo as idiotices. A rainha já anda me entorpecendo. Sua voz é de uma suavidade aguda. Ela chora. Quero ouvir a palavra completa. Como se o meu dia fosse todo livre. E houvesse pela casa uma ordem. Ao alcance da mão. Fome. Sono. Sede. Nem mesmo o desespero me atingirá. Definitivamente enlouqueci por vontade. O meu riso compartilha da certeza destilada no olhar. Na voz da rainha há o prumo da regência. Ela conduz o movimento certo do dizer.  Riscos de luzes sonoras que nos levam à embriaguez mais lúcida. Na noite da grande solidão, a rainha virá. Sentará conosco à mesa. Achará a vida absolutamente ridícula sem a sua presença. "A completude estava em mim. E eu não sabia". Sua boca vermelha e úmida e entreaberta. Nossa passagem secreta. Tudo em silêncio à volta. Seguramos essa emoção em nossas mãos como se um peixe vivo. Um autêntico milagre. Somos suas discípulas. As três mulheres de fluxo incontido. Quem nos saciará?

Crio gatos imaginários, enquanto espero. E quando eles roçam minhas pernas com o peso grave do corpo, sinto uma vontade arrepiante de gargalhar. Mas controlo. Engulo o desejo e deixo ele espalhar-se pelo meu corpo em um gozo particularíssimo. A rainha nos ensina a viver secretamente. Não queremos mais os vícios menores. Eu e minhas irmãs.

A mais nova — ninguém a entende. Ninguém. Ela não tem se cortado ultimamente. Nas noites em que saímos com os cafajestes e uivamos para a lua, um filete vermelho e espesso passeia do nariz à boca. Ela me sorri com os olhos de jabuticaba. E diz que quer ir para casa. Nesse momento eu aceito o amor como a grande condição. Depois disso ela vive o seu retiro. Toma água mineral gaseificada no terraço ao primeiro sol das manhãs. Mira o céu e compõe um poema: "O horizonte é o mais perfeito verso de Deus / visto à distância". A felicidade a atinge e ela se sacode toda como uma cachorrinha. Seu jeito de acordar. Corre pela casa se despindo. Aumenta o volume. A música a abraça. E brinca com o corpo.  Uma garota de calendário, a nossa irmã mais nova. Tem um baú dourado em seu quarto. Onde guarda as bonecas. Uma vez flagramos o nosso irmão fodendo uma delas. Ele jamais compreenderá o nosso mistério. Ficamos as duas nos sentindo muito bem ao ver aquilo. Nos sentimos também.

Quando está triste desanda a mexer no baú cantando uma baladinha pop qualquer. Escolhe entre as bonecas aquelas que serão sacrificadas. Amarra fitas vermelhas no pescoço de suas vítimas e as pendura em vários cantos da casa. Todos jantamos a luz de velas e nos pretendemos atores de um roteiro insólito. Na manhã seguinte, acordo bem cedo e desfaço os vestígios. Eu mesma compro as flores e encho delas a casa. Ela agarra o meu braço e seguimos pela avenida principal. Aptas a adquirir novos brinquedos. Duas crianças que somos.  Desconfio que ela seja a preferida da rainha.

Eu sou a do meio. Transito no meio. Vou até onde o corpo menos pode suportar. Beleza às avessas. Tenho ossos delicadíssimos e gosto de passear pelos telhados. Os covardes veteranos se espantam com a minha coragem. Arrisco-me ao extremo para levar até eles o nome da rainha. Quando me espancam, encarno Bovary e sua última mirada antes da morte: A rainha vive.

Do outro lado da linha, no lugar dos perdedores, eles escutam a minha oração com suas cabeças baixas. Um malabarista me acompanha. Ele é o artista que, na madrugada, com sua vigorosa água, mata a sede dos que mendigam companhia. Sofre pelo meu corpo, mas não pode tocá-lo. Sabe que suas mãos são grandes demais para a minha violenta delicadeza. Eu sou a guardiã. Aponto os mistérios. E comprovo. A rainha está por vir.

A última irmã. A primeira. Está pronta. Obedece prontamente. Não se descabela por bagatelas. Não se descabela. Uma xícara de chá. Uma xícara de chá é sempre o melhor. Melhor depois de um banho ensaboando bem a cabeça. Com o melhor xampu. A mesa comporta objetos. Para ser suavemente tocados. Nada falta. Creme. Vegetais. Leite bem branco. Gertrude ainda não veio? Mas ela deve estar a ponto de. Não é bom causar má impressão diante de convidados tão ilustres. Os meninos tomaram banho. Um risco vestir a saia vermelha. No ponto em que estava mataria dois coelhos. O coelho da esquerda disfarçava a timidez com um vozeirão que só vendo. Um vozeirão derretido em olhos ternos. Ela imaginava. Procura entre os ouvintes a cabeça graciosa do amante. Distâncias condensadas. Sim. Seja também um nobre cafajeste. Fale-me essas coisas todas ao meu ouvido na hora mais rígida do seu corpo. Quantos anos você acha que a Mary Ann tem? E me pegue como a uma mercadoria cara e já paga. Um peixe de olhos esbugalhados embrulhado no jornal do dia. Poderá até dizer que é coisa sua. Desconfio que a cintura de Mary Ann anuncia um novo rebento para a família. Se puxar ao pai. Ainda que bem. E o coelho da esquerda sorri para o dono da venda. Boa tarde, Senhora Stein! Quantas mercearias existem por aqui, hein?! Agarra o peixe embaixo do braço. Sorri com um contentamento fresco. A saia foi sim uma boa escolha. O coelho da direita demasiado umbilical. Os olhinhos vivazes. Os olhinhos crispados. Vamos, meninos! Façam disso um bom quadro para pendurarmos naquele espaço da sala em que o papai fez um furo errado. O coelho da direita saltita pelo auditório. Não cabe em si. Ele não faz também idéia de quanto é difícil ir até a mercearia. Ir até a mercearia e escolher com os sentidos um bom peixe. O que temos para jantar, querida? Ela estica o pescoço com o corpo pendido um tanto para a esquerda. As duas mãos molhadas cravadas nos quadris. Um excelente avental esse com que a Gertrude nos presenteou. Realmente uma mulher de refinado gosto. A risada do coelho da direita fisgava o sorriso somente de um lado a ponto de quase fechar o olho pra onde a boca corria. O corte. Cortar o corte. Cortar o corte através. Um crescente atravessar em ascendência seguido de inigualável gemido, aponta sutil, rubras dobras radiantes. As alegrias virão multiplicadas de novidades. O outro olho se mantinha aberto e risonho. E ela pensava que o amor teria sido sua grande ruína. Tarde demais para desfazer o traçado. Um rosbife em centeio com muita maionese! Onde ela está enquanto todos ali? Brindando com os mortos em taças transbordantes.

Paira, sob sua cabeça, a magnífica coroa.

 

 

a pequena costureira de asas
cida pedrosa

A menina espiava a terra molhada com a vista atenta. O barro da estrada estava lisinho, sem sinais de patas, rodas de carro-de-boi, pneus de bicicleta ou de carroça. Perfeito para busca do dia. O sol também ajudava, era manhãzinha e o orvalho brilhava nas folhas do marmeleiro. Tudo era odor, cores e canto de pássaros atrasados. Tempo certo para procura. As caixinhas de fósforos e os vidrinhos de vermífugo vazios sacolejavam no pequeno bornal feito de pano. Olhos sempre atentos em direção dos que não deixam rastro fácil na estrada. De repente! bamboleante, bolinhas brilhantes, vermelho e preto, patinhas ligeiras, anteninhas para o alto. Carochinha! O mais docinho dos insetos. A menina, com mãos precisas, acolhe na caixinha o bichinho. Tinha tomado o cuidado de fazer pequenos furinhos para que o ar penetrasse no pequeno cárcere improvisado. Anda, anda e vê de longe um rola-bosta. Este não serve. É bonito, porém nojento. Estrada afora mais um pouco e de repente: verde e brilhante como uma esmeralda, rajado como diamante, lá vai ele, rápido e sagaz, quase perfeito, o único problema é o cheiro de besouro que ele tem. A menina se apressa e alcança o alvo desejado. Este vai para o vidrinho, dará menos trabalho na hora da soltura. O sol já está na metade primeira do céu e é hora de voltar para casa. Já teve dias de coletas melhores, mas dois é suficiente para os afazeres da tarde. Nem bem aponta na porteira a mãe lhe chama para a tarefa da louça da merenda. O bornal é encostado num canto à espera da hora costumeira. No início da tarde, quando todos dormem e encostam a labuta em suas redes, a menina se põe em um canto da parede, abre a caixa de chapéu Ramezoni e espalha as bonecas de sabugo pelo chão. Os retalhos coloridos, frutos das sobras das máquinas de costura da família, são moldados milimetricamente e pregados com cera de abelha no sabugo. Lindas bonecas, vestidas a caráter, prontas para as jóias. Bem devagarzinho a menina abre a caixa de fósforos e duas anteninhas trêmulas apontam assustadas; com a delicadeza dos atos necessários ela segura a carochinha entre o polegar e o indicador. A primeira asa é arrancada de um só golpe, a outra demora um pouco, quando a dor se instala qualquer corpo se rebela. A boneca Maria ganha um lindo broche de bolinhas e, enquanto isso, no vidrinho transparente, o cascudo estimado se esvai sem  ar e sem ver como asas verdes translúcidas, se transformam em um lindo colar de esmeraldas para a boneca Beatriz.  

 

 

 

sem pausa
daniela lima

De modo que eu, este caos, não sei o que penso, o que digo ou o que sou. Desconhecida de mim mesma.

 

Estou debruçada na janela e ouço ele abrir e em seguida bater a porta e depois de algum tempo não ouço mais nada além das crianças chegando da escola e do rádio da vizinha então deito na cama e me encolho agora as crianças estão brincando de pique-pega nas escadas e no rádio as notícias do dia e em mim além do silêncio um certo alívio afinal não há mais nada

 

a sua matéria não é mais possível

para

mim

 

Tenho a impressão de ouvir os meus sonhos se esgueirando pelos cantos da casa e acordando as lembranças e o amor e então levanto e fecho a porta do quarto na tentativa de deixar o mundo barulhento do outro lado da grossa camada de madeira mas em pouco tempo os malditos sonhos passaram por entre as frestas e alcançaram o meu peito

 

a gente pode esquecer dos sonhos

mas os sonhos

não esquecem

da gente 

 

 

 

 

soneto em brasa
florbela de itamambuca

 

ô dona o meu buraco não tem chão

onde no catimbó some nois tudo

pra não despencar de vez não desgrudo

desse rozário resando o dedão

 

quando o mar dá respingo de trovão

e sai pro céu os galho dos graúdo

até meus passarinho fica mudo

esperando baixar a escuridão

 

mas tem raio bonito que diz coisa

diz que o tempo tá bravo sem motivo

bravo que nem a madeira de brasa

 

esquentado que nem menino ruivo

o cão nem vem causar na minha casa

no fundo desse mar tem peixe vivo

 

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