edição 27 | junho de 2008
temas:  lixo | poder | haraquiri

 

pig latim
adelaide do julinho

pai | polícia | patrão
padre | papão | pererê
papa | padrasto | pão
: phoder na língua do pê

  

minha butterfly
assionara souza
  

       Não havia descanso possível para o impulso. A idéia era dispersiva e enchia a página. Um jogo de dardos no infinito. Pontos em preto e branco. Cores se assim escolhesse. Ela me olhava. A parte e o todo. Gostei de você, querida! Então começamos a noite. Então era tudo veloz e urgente. Olhei para o velocímetro. Seria possível um tempo aberto e fechado? Vamos fazer um pacto sem sangue, desta vez; pode ser? Sorriu e talvez eu não. As ruas indicavam lugares absolutamente novos. Placas surgindo à medida que o carro avançava. Dentro dela agonizava um bicho angelical com uma das asas cortadas pela raiz. Não poderia mais se arriscar sozinha a abismos e penhascos. Exercitava uma eternidade mortal. Vivia à procura de um símile gauche com quem, de mãos dadas, novamente pudesse experimentar o vôo. Anjos siameses tem um só par de asas. Suicídio é o desencontro das mãos — quando a infidelidade pode ser fatal.

       O medo era tanto que achei que ia valer a pena. A veia pulsou antes de os caninos crescerem e os olhos me mostraram uma compaixão que já havia atravessado vales noturnos demais. Doeu em meu pescoço o romper das gengivas por puro desejo antecipado. Me interessa muito a decisão; evita dispersar poeticidades. Os dedos de unhas vermelhas abrindo caminho entre pêlos para que ela fincasse os dentes. Tudo o quanto eram extremidades senti arrepiar em agulhadas. Onde só vontade, agora também dor. Fui ficando inteligente em meu corpo nessa hora exata. 

       Conheci a ordem dos movimentos. Conheci ausência de sono. Conheci vigilância e força de animal que baba diante da presa sem depredá-la de todo. O claro do dia em plena amnésia da vida corrente e prática. O meu nome e sobrenome há muito não usados. Ela encenava Jules et Jim e trocávamos de roupa para não sair de casa. Somente me interessavam os codinomes da noite. Ali em nosso desleixo fora de todas as órbitas. Ninho nas nuvens do pássaro amaldiçoado. Não me atingia o frio porque entre sua única asa o abrigo era febril. Eu preferia não pensar que tudo estava longe de se chamar amor. Era mais desejo desesperado. E curiosidade pela beleza technicolor produzida por suas mãos. A parte mais bonita do corpo. E a mais capaz de engendrar violências que eu acolhia dentro de meus vazios. A emoção calibrada rompendo intimidades da forma mais consentida. Fingindo pra não fingir. Ser tão desejada assim era um desperdício ninguém ver. Faz pensar que o tempo de viver deve ser provado antes de amadurecer. Mostrou-me os segredos da cidade com um nem só de pão vive o homem, muito menos as mulheres. Andamos por ruas e vielas e enfrentamos os sorrisos fragilizados dos seres sombrios. Cosméticos e anestésicos diluíam a solidão dentro de copos néons. O tanto que o corpo pode o corpo quer. A civilização avança pela coragem suicida dos que se entregam às clandestinidades. Um minuto de eternidade. Sem gelo, por favor. Eu deslizava na cadeira e ela me brincava à vista dos olhos de todos. Só valia se fosse de verdade e não mera performance. Todos ali eram sérios demais em suas falsidades. O nosso quarto cama de hospital. A luz azul do aquário um abajur vivo. A nossa oração, os gritos dos amantes no quarto vizinho. A mulher gostava que ele batesse com força e depois a enfrentasse terrível quadrúpede. Ficávamos sérias e não nos tocávamos. Ela orgulhava-se de minha cumplicidade. Mas toda a coragem que eu demonstrava antecipava a certeza da separação. Poderia ser que eu já desejasse exercitar em outras plagas jogos e tramas a que ela me havia iniciado. Minha atração por abismos vinha da certeza de que, na queda, meu corpo faria romper amplas asas rasgando a pele. E eu sozinha seria suficiente para a originalidade do mundo visto do alto. Embora com os pés no chão, simples e previsível mortal. Estigma do pelicano. Ávida por flagrar singelezas sendo corrompidas. Caravaggio disperso no cotidiano. Todos querem essas taças com líquidos proibidos. Todos querem vivenciar imortalidades provisórias. Por trás da doçura do olhar, o gemido de Caim pedindo para ser libertado. Ela percebeu ausências nas mínimas distrações. Na frouxidão do meu abraço. Na vontade de habitar de novo as manhãs. E no meu tédio pelo repertório de Lestat que aprendi a recitar de coeur.

       Foi quando vieram os pesadelos. O meu olho pedindo por favor, vá embora. E não era simples assim quebrar o pacto. O fruto apodrecido no galho também guardava sementes. Diante da crueldade da minha indiferença, mostrou-me a cicatriz da asa perdida sangrando. E me fez sangrar também. A música estourando nossos ouvidos no momento da guerra. Não me deixaria ir até que eu assistisse à última cena do desespero de me perder. E eu, sem qualquer paciência pra Puccini, destilava ironias refinadas e dava a cara pra bater. Venha pra cima, meu bem. It's decision time! Sou uma dama caprichosa que se permite indumentárias as mais diversas. A dança maníaca nos embriagava. Eu não ia parar até ela se sentir novamente cheia de munição para acertar outra vítima. Vamos, beba todo esse copo de lágrimas. Alimente sua alma com o sofrimento que o seu amor me causa. A loucura dela me fascinava e me adoecia. Essa era a minha última provação para sermos iguais. Dava-me certeza de que eu estava pronta pra enfrentar o risco do amar. Anjo cego que voa no altíssimo para não esbarrar em rochedos. Anjo equivocado que se diverte e sente culpa. E chora por não conseguir ser sozinho. Eu querendo pra o meu uso e proteção essa força toda. Louca por provar do amor do mundo. Esse que atravessa solidões e escuros e não permite que os morangos fiquem mofados. Devora-os antes.

       Na noite da última solidão, ela me levou ao seu refúgio e me contou segredos os mais singelos. Era verão e o suor gelava quando o vento batia na pele. O olhar destilava uma amarga sinceridade. Não sou digno de entrar em sua morada. O meu corpo ainda aprendendo linguagens inusitadas. E a medida do desejo dela determinando o meu desejo. Os faróis iluminavam o rastro de mil pegadas na areia e um filete de onda indecisa e grossa gravava na memória do tempo a nossa história particular e anônima. O beijo de despedida durou até o amanhecer. Depois ela partiu em um vôo oblíquo pra bem longe de mim. Quando voltei pra casa senti despontar nas costas o arremedo de uma asa. Doía e me enchia de intensidade.

 

 

poema para Zhang Yimou
(ou variações sobre um mesmo tema do filme Herói)

cida pedrosa

a lâmina corta a água

e a cor se faz

 

o vermelho se apresenta

na face a dor

o ódio em si encerra

 

em vestes e passos

a honra anda

tudo é som solidão sentidos

 

o laranja se apresenta

as folhas voam

o outono em si vagueia

 

leve como a tarde

a dor corta a espada

tudo é vale voz veia

 

o azul se apresenta

e começa a redenção

certeza de destino cumprido

 

a lâmina é certa

o saber é náufrago

tudo é leve livre ligeiro

 

o verde se apresenta

em luta e glória

castelo e espadas

mãos mandarim

 

cetins caem sobre facas

som de almas

corte

e em nome do amor

vence o orgulho

 

haraquiri cumprido

qual fio varando a água

qual faca varando veias

e o fim se faz transparente

 

os heróis morrem em um único gume

 

a lágrima se prende à água

a água se prende à lâmina

os olhos respiram chama

 

e a morte

a morte é uma metáfora

e se esvai sem cor  

 

 

 

soneto de arrasto
florbela de itamambuca

 

pescador que deixa o peixe no chão

chama o breu do urubu só de butuca

daí quando os meu pequeno ergue as mão

pra areia quase que vai é pra arapuca

 

os pássaro malvado mira a nuca

dos meu dois pititico estribuchano

que nem que vem da noite açombrassão

pra espantar os coisa ruim pra calunga

 

ê vem o bicho preto lá do alto

risca no céu a flecha que nem jato

rasga as tainha que já tão tantã

 

arrasta passarinho, rato, rã

tudo pro meio da estrada de asfalto

tudo pras beira da minha manhã

 

 

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