edição 25 | abril de 2008
temas:  "quando soltaram os cachorros loucos" | noite

 

1 poema
abigail simmons 

Não, não dormirei

Para não correr o risco

De sonhar com a tua partida

E a tristeza que dela advém

Não dormirei para sonhar com teu retorno

Não quero a alegria que fatalmente

Me tomará ao me acordar

E se tornará melancolia

Pois na plataforma

Não haverá

Ninguém

 

 

Abigail Simmons nasceu em Viena, mas mora no Recife (PE) desde os 12 anos. É bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e trabalha em casa, fazendo traduções de filósofos alemães do século 19, (Novalis, entre outros). Gosta de literatura fantástica e pretende voltar à Áustria para visitar Salzburg e dançar o Danúbio Azul.

 

 

 

porque ela era sua desconhecida [ou] sete parágrafos sobre o sono ou sonho
luciana borges

Eu sou sua miragem/ sombra fresca da sua realidade./

Sou sua resposta/ sua ilusão de ótica palpável/

seu improvável/ seu conforto e seu pesadelo.

Zélia Duncan

 

§1

os efeitos da noite. não se livrar do intrigante pérfido indispensável mecanismo de dissolução de formas e cores. para que se livrar. a distorção que melhor faz enxergar. escuro clarão. fascinante e assustador um ambiente ou pessoa podem parecer diversos sem a luminosidade do dia: escamas de camaleão. acordar com o sol dormir com a lua, quem havia inventado essa máxima. melhor é passar a noite em claro, entrevendo obscuridades na luminescente oclusão da luz. é isso o que ele pensa agora, vendo o corpo da esposa dormir.

 

§2

a primeira vez em que dormiram juntos, ainda namorados, era de noite. e todas as noites nesse tempo do casamento. sempre assim. ela dormia na mesma posição. o corpo imóvel estendido ao longo da cama, os braços cruzados sobre o peito, ou estendidos ao lado do corpo. sempre de costas. o sono da múmia. se ele dormia, e acordava no meio da noite, tinha a nítida impressão de dormir numa pirâmide, ao lado do sarcófago. carros buzinando na grande avenida. luzes. sirenes. a cidade lá fora e ele ao lado da cripta. mas ela respirava. sim, incrivelmente, ela respirava. pausadamente via o peito subir e descer. os seios bonitos dentro da camisola sob os braços cruzados, os olhos lacrados. o corpo estendido dava-lhe calafrios e ao mesmo tempo lhe despertava a incontrolada ânsia da posse, sua boca salivava. de onde? de que tempo?  ele que não sabia que época remota era essa outra, a noite opressa sobre a memória, as lembranças inexistentes.

 

§3

noites sem conta, ele a toca levemente, apenas para se certificar. ela abre os olhos, sorri e pergunta o que foi amor, sem perceber as gotas de suor que lhe povoam a fronte excitada e insone. outras, lentamente ele lhe sobe a barra da camisola, descobre pernas e pêlos, cola-lhe a boca no seio, escala seu corpo como a um monte íngreme, altera-lhe a posição apenas no que é necessário para cavalgá-la pedindo que não se mexa, não fale, não abra os olhos. goza lentamente o escuro das pálpebras, o escuro do sexo, a imobilidade do silêncio na noite.

 

§4

ela era sua esposa. todos os dias ria e falava, a pele clara, os olhos redondos. todo o dia, nas ocupações diárias, tomava conta de tudo, esperava por ele, cuidava dele como cuidaria dos filhos que ainda não tinham. produzia-se cabelo unhas perfume dentes, tudo para ele, sempre chegando exausto do trabalho. ela era sua esposa. mas aquela atividade toda do cotidiano a tornava uma estranha. de dia, à luz do sol, tinha certeza de que vivia, mas à noite, no quarto, mesmo que não fosse o escuro total, sua figura inerte, mas respirante assumia requintes de fantasmagoria, contudo ali é que parecia encontrar o real. real? assim todas as noites. os dois sozinhos no apartamento e, no dia seguinte, quando amanhecia, ele apenas acabara de adormecer. quando acordava, ela já se levantara. ela era só dele. enquanto não arranjava o que fazer com o diploma recém conseguido, ela era só dele. o tédio dos dias só podia ser apagado pela noite. ela, a sua salvação, seu conforto, labiríntico véu de maya. durante o dia, nenhuma palavra sobre as ações da noite, esse mundo paralelo.

 

§5

adormecida a esposa após o dia, a tarde, o jantar com os amigos e o amor, ele se consumia no desejo de saber o que se passava por detrás das pálpebras, descidas sobre os olhos, cortinas sobre um quarto proibido, o leito da virgem. queria saber o que a roubava dele durante o sono, um sono de morte que a tornava tão alheia e do qual ele não podia partilhar, apenas projetar esta espécie de loucura. seus olhos então o traíam e no lugar da pele rosada da esposa, via uma morenez africana; em vez de olhos redondos, via o amendoado milenar de olhos outros, estranhos. o sono ancestral.

 

§6

os colegas de trabalho estranham suas olheiras e, como a jovem esposa, ignoram suas noites de vigília, enquanto ela repousa em sono profundo. tão profundo que não percebe quando o marido, naquela noite, após observá-la longamente, começa a prender-lhe os pés com as faixas de linho que comprara exclusivamente para vesti-la do que sempre vira. começa pelos pés, sobe pelas pernas, deixa um vão entre elas; delicada, mas firmemente, chega aos braços cruzados, às mãos, aos ombros, contorna dos seios ao nascimento do pescoço. ela imóvel pensando tratar-se de uma simples variação do jogo a que se entregavam desde sempre. ele maneja com excelência as faixas estreitas tudo executando com cuidada atenção e técnica perfeita, a memória acordada de súbito. serve de instrumento à imortalidade ritual de uma deusa imperecível, e se torna, ele próprio, deus. era esse o outro tempo, essa a sua função, a que nunca havia esquecido.

 

§7

o sono dela é, com efeito, profundo. mas não o bastante para impedir que desperte, do adormecimento voluntário e do jogo, no momento em que as faixas atingem o pescoço e impedem o grito, sufocado para sempre na garganta. ele ainda pode ver, através do tecido, seus olhos semi-abertos, quando ata as últimas pontas da faixa sobre os cabelos. no entanto, já amanhecera há tempos, era necessário ir ao trabalho. antes de fechar a porta do quarto, volta-se. percebe que, sob as ataduras, o peito já não arfa: aceita finalmente sua posição, seu repouso. agora, sim, estremece aliviado, reconhecia a mulher com quem havia se casado.

 

 

Luciana Borges. Tendo surgido no chuvoso mês de janeiro, é do signo de capricórnio, o que lhe dá, entre tantas ambigüidades, patas firmes na terra, mas também uma escamada e instável cauda de peixe. Desde muito tempo se lembra de inventar histórias, modo mais fácil que encontrou de des|conhecer o mundo. Sempre escreveu como amadora, em todos os sentidos que essa palavra possa assumir. Tende a falar e rir alto, apesar do humor um tanto corrosivo. Invariavelmente, possui um senso de sinceridade suicida. É professora de literatura no Campus da UFG em Catalão, cidade onde nasceu e, salvo por um breve hiato, sempre morou, estudou, escreveu e aprendeu a gostar da literatura. Já publicou textos em coletâneas e revistas, mas nenhum livro. Troca o dia pela noite. Odeia que a acordem. Adora cinema. Escreve, na Palávoraz — Literatura e Afins, a coluna "Cabra com cauda de peixe".

 

 

noir
luci collin

I.

 

No escuro as palavras não existem não têm porque existir as palavras não precisam. Sendo nem sim nem não nem certos nem sabedoria apenas abandono irreflexão um inominável mesmo o divertimento numa fuga a mímica do coração que escondido agora o que se abre feito enfim ser sem. Que nunca seja tarde a isto ao que se dá a quem que nunca seja tarde assim mesmo a cada vez aquele íntimo olhar olhos fechados este sem rumo uma vagueza boa este sem jeito este ser sem ter mesmo que ser. A cada vez esta primeira vez. Que nunca seja nada nem seja apenas si de tanto a mais. A minha consciência nua absurda crua primitiva inventa sorrisos únicos inventa melodias inventa exaustões e estrelas e a noite acorda a noite faz-se ver. As luzes morrem mesmo aquelas que se contam em bilhões de anos em bilhões de anos luz que mentem que falsificam versões luzem eternamente tremeluzem enfraquecem-se fingem existir e nós elaborando as existências nossas delas fingimos igualmente acreditar que nunca morrem os azuis que são como se fossem nossas sensações desimpedidas quando se abre aquela caixa quando se abre aquela porta quando se deixa escorrer entrar. Se a noite acaba a noite não acaba nunca se você está aqui se estamos se não está onde está. Onde está? É só uma pergunta ingênua inapelável tosca inconcebível mesmo. Na escuridão as palavras movem-se sem olhos tateiam superfícies e desprezam a necessidade do acerto. Pudesse vir soubesse concedesse desse e eu soubesse adivinhasse conseguisse cobrisse a cama o tapete os cantos as cortinas de flores recém molhadas de pétalas dizendo-se. Tarde mesmo a chuva foi embora as nuvens se conformaram há aqui. Há apenas aqui e se não for verdade é apenas uma pergunta é uma garganta de onde surgem desejos sofismas teorias incomunicáveis aquilo que jamais se pode mesmo dimensionar. Exerce-se a solidão das roupas num universo escuro recém criado as mãos são imensas os braços são gigantescos as mãos murmuram como uma essência faz-se. Nem nada more aqui nem nada mais acabe que tenha sido deixado nem nada diga-se. A si. A minha inconsciência um apelo um gato sob a aventura das vidas para sempre mudo um objeto largado num sótão uma sombra uma corrente de ouro dos tolos imagens com que batizo os meus olhos são camaleões são aqueles mesmos poentes iguais que nunca se repetem. Eu via cair as tábuas da casa eu vi as folhas caindo eu vi a escada ser recolhida a chave girar eu escuto eu vejo a cartola sendo mostrada sem nada dentro e então existe tudo o que se pode ver e o que não se quer e que se finge de escuro e escapa do imediato — no meio da noite de nada se sabe não se sabe de nada que não sejam o corpo único e o corpo dividido entre um outro as pernas entre outras pernas os braços sozinhos quando não se tem abraços são obscuros solitárias intenções são tristes. Se eu tocasse até até onde se então pudesse colher. É uma certeza de noite é uma certeza de múltiplos é uma certeza de insanidade infinita e cálculos que recuperam o princípio do círculo das perdas das paixões das frases que se reconsideram. As matas queimam e de nada adiantam esforços cumpre apenas olhar aquela música das chamas de nada adiantam bússolas neste quarto as matemáticas só podem diminuir portanto espanto tamanho e deixa-se estar. É só uma pergunta que isenta-se de fins e meios. É só uma garatuja uma imaginada sentença o máximo que se consegue ver na parede no muro nas catacumbas nos subterrâneos nos perdidos tempos longes porque sabem de tudo o que é noite de tudo o que é escasso de tudo que redondo pulsa de tudo que é imediato de tudo que é imensamente confesso. Deixa estar. Deixa estar.

Deixas.

Basta esta luz esta luz que foi apagada basta esta escuridão.

 

 

 

II.

 

Um interminável. Fiz. Tudo o que eu disser será usado contra mim num tribunal. Podia ser dito com flores. Mas as flores não existem. Preciso agora acreditar que não existem flores para que eu possa sobreviver. Quero sobreviver e preciso agora acreditar que as flores não existem não existem flores quero sobreviver. Das minhas mãos nascem desenhos eu perpetuo o tangível então faço uma eternidade dos traços e então sobrevivo e no escuro eu desenho pétalas elas formam uma beleza inconcebível e depois passo tinta por sobre eu que quero sobreviver. Das minhas mãos nascem sentidos melodias traços eu eternizo compassos e então sobrevivo. Pentimento. Não existem flores como não existem noites inteiras de amor como não existem verdes absolutos como não existem azuis definitivos no céu como não existem discursos que não envelheçam leis que não prescrevam como não existem traços que não envelhecem nos rostos.

Nada do que eu disser será usado. Nada do que eu disser será usado a meu favor. Nada do que eu construir inventar esconder disfarçar com um lindo papel de presente onde transbordam dourados e votos amabilíssimos com um laço em cima com uma fita caríssima nada do que eu disser terá a eficiência do brilho daquele papel de presente porque por dentro o que eu disse. Só isto. E depois de aberto, ora, depois de aberto o presente, depois que se sabe o que há dentro, depois que não se pode tomar nas mãos algo que não existe então nada do que eu disser será usável segurável proveitoso. E o coro dirá que isto um crime. O que eu calo para sempre. Publique-se.

Você vai me render flores e rimas. E depois vai converter em vaias. É como receber um buquê com o cartão errado. O moço da entrega se enganou apenas.

Embora não se perceba dada a conformação mimética dos discursos máscara sorrindo eu morrerei coberto de feridas sangrando por dentro e por fora um grito nenhum na garganta. Lá fora freios rangendo. Lá fora as hastes humílimas destituídas das antigas flores. E as pedras sendo amontoadas. E os freios rangendo. Em infinito silêncio, num trabalho secretíssimo e absoluto, as chagas se multiplicam. Embora não se possa perceber. Embora quase imperceptível a respiração é ainda o limite. Desfaça-se a luz.

A escuridão existe para proteger o invisível.

Os cachorros sonham em preto e branco.

Inveja do cão.

 

 

Luci Collin (Curitiba, 1964). Graduada em Piano, Letras e Percussão. Doutora em Letras. Dez livros publicados. Recebeu premiações em concursos de literatura no Brasil e nos EUA. Representou o Brasil no Projeto Literário da EXPO 2000 em Hannover. Participa de antologias nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai e Argentina) e tem artigos e traduções publicados em diversos jornais e revistas. Mora em Curitiba e é Professora de Literaturas de Língua Inglesa e de Tradução Literária na UFPR.

 

 

 

 

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