edição 24 | março de 2008
temas:  labirinto | família

 

1 microconto
ana peluso
 

era a gastura em sua pança estorcida. nunca negou sua fome incontrolável. como quando viu os cabelos dela. e voltou para casa ruminando se ela não tinha cabelos demais. e se os comesse? comeu. após cortá-los pelo rabo na aula de biologia. a professora branca soltando o giz aos poucos. a classe boquiaberta se voltando em sombra para ele. a tentativa rápida de deglutir o maço de mechas enfiado na boca.

o laço desfeito de fita
ainda boiava nos ares quando ele conseguiu.

 

 

Ana Peluso. Paulistana, poeta e ilustradora, bloga no Poesfera, enquanto prepara seu primeiro livro. Sem pressa.

 

 

#
anike laurita
  

vaguei pela madrugada catando papéis. biscoito da sorte e horóscopo eu desisti. perdi meus passos na encruzilhada dos teus. meu pai me ensinou o caminho mais difícil. por Dédalo, por que fostes tão longe na ânsia de me fortalecer? enxáguo as roupas tentando decifrar os códigos. escorregadios. movimentos aleatórios e solitários. cheguei perto demais do Sol ofuscada pela minha dor. fluí pequena sem perceber. casa de madeira. coração de lava. minha prisão é clara. panóptico. milhões de chaves e nada para abrir. fecha aqui, fecha acolá. olhares estranhos me deixam acuada. faca de dois gumes. peão e rei. desacredito no medo. viajei por mundos oníricos e perdi muita bagagem. rios. continuo corrente. barro. sou muito mulher. descobri minha deusa lutando contra Titãs. não esperavam isso de mim. eu era uma criança terrivelmente obediente e isto me magoa. morro aos poucos tentando me engolir. antropofagia. apetite de cão sem dono. flutuo tentando te apontar a entrada. fraquejo. retorno. círculo sagrado. tempero tua carne. desvendar você pode ser a imagem que me falta. estou entrelaçada na tua bússola. vou começar pelo fim e dar minha cara a tapa. quando pensei que era um anjo podaram minhas asas. eu tô quase chegando em mim de novo.

 

 

Anike Laurita (Ilha do Desterro/SC, 1980) Mulher nascida fora do seu tempo, alimenta-se de reminiscências e estranhamentos. Seu passatempo preferido é desconstruir as veladas relações amorosas dos tempos hipermodernos, o que tem lhe rendido muito material criativo e dezenas de desilusões. Edita o blogue Pedro e Cachorrita.

 

 

 

july ou a falta que ela me faz
walleska camargo

Terceira de uma ninhada, filha de Rex e Paloma, July sempre foi a alegria da família. E teve filhos e netos. Juntos eram sete. Vivia sempre de bom humor. No quintal, corria sem parar, brincava com os meninos, para o desespero dos adultos, vendo o jardim ser esmagado pelas suas patas. No primeiro ano de vida foi mimada por todos. Também pelos amigos, que sempre perguntavam as origens da raça Lhasa Apso. Peludinha, cor de ouro, radiante e independente, não suportava a idéia de não passear pela Praça da Liberdade, ruas e avenidas da cidade. A maioria dos parentes consideravam-na um presente dos deuses. As retribuições, no dia do aniversário, sete de julho — daí o nome July — eram as rações importadas, roupas novas, laços de várias cores e banhos prolongados na banheira de hidromassagem. No decorrer da sua vida, tínhamos as maiores cumplicidades e os desvãos, enredos que a vida nos prega. Católica, como eu, estava sempre de olho no crucifixo prateado da parede do meu quarto — "ela parecia rezar junto comigo, gostava da minha voz repetindo as orações noturnas". July sabia quem eram os meus amigos. Boa no latido, arredia com estranhos, botou para correr três namorados, um noivo e vários espertinhos. Nunca ficou parada na vida mesmo após um acidente que decepou uma de suas orelhas. Meu primo Alex acha que eu sou fresca, metida a burguesa, somente pelo fato de colocar roupas de inverno nela. Com certeza, essa deve ser também a opinião de Paula, sua esposa, que sai dia entra dia adiciona mais um gato no seu apartamento. Já são nove. Na realidade, acho que é ciúme por parte do casal. Ademais, os dois fazem uma visita por ano, na Páscoa, e morrem de medo das mordidas de July, já que o último que riu da falta de uma das orelhas, levou uma dentada no calcanhar. Mas, tirando isso, não existem outros primos que não se encantavam por ela. O que não quer dizer que não aconteceram acidentes domésticos, cujas origens alguns não sabiam explicar. Eu sabia. Um aquário quebrado, espelhos partidos, farelo no sofá e outras coisas para o delírio da minha mãe. Aliás, até hoje nunca soube como ela conseguiu subir num dos armários do barracão. Isso na época que criávamos galinhas e patos. É claro, tudo idéia minha. À noite, além das orações, pode parecer contraditório, esquisito ou meio maluco, lia para July, em voz alta, poemas de Sylvia Plath, minha autora predileta, e às vezes, ficávamos em silêncio olhando uma para a outra por um longo tempo. Entretanto, tudo acabou numa noite de fevereiro, debaixo de um Palio Weekend. O motorista perdeu a direção do automóvel e alcançou July no passeio. Morte instantânea. Uma tragédia com muito sangue e o afundamento do osso frontal. O luto perdurou por mais de uma semana. Tinha consciência da perda e a aflição de mais uma separação na minha família. O milagre da vida está na presença e lembranças alegres — lembraram Rafael e Marilu, quando perguntaram sobre o destino da cachorrinha. Uma resposta que não consegui dar, pois os olhos estavam cheios de lágrimas. Rafael tentou se esquivar, mas compreendeu, com a sua sensibilidade de artista, a falta que ela me faz. Por fim, os dois foram comigo até o quintal. Construímos uma cova, colocamos uma lápide e escrevemos o seguinte epitáfio: "July, que o ventre terrestre respire o ar da montanha, uma bênção dourada, na sombra eterna da sua presença iluminada".

 

 

Walleska Camargo nasceu em 1970, em Belo Horizonte-MG, sob os domínios do signo de peixes com ascendente em capricórnio e a lua em câncer. Cão no horóscopo chinês. Curte romances açucarados, poesia inglesa e cinema italiano. Visitou a Europa quatro vezes. De natureza cult, gosta do mundo dos símbolos, adora animais e peixinhos dourados. Fez teatro universitário, mas não dispensa as telenovelas. Ganha a vida como fotógrafa profissional num jornal da capital. Católica assumida, sensível, sentimental e romântica. Vive a desilusão de dois noivados desfeitos e a separação dos pais.  Estreante no mundo da literatura.

 

 

 

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>