edição 20 | setembro de 2007
carta para antonia ou um poema de amor

 

Curitiba, 23 de setembro de 2007.

 

Antonia:

 

Acabou ontem a greve dos carteiros.

Cartas acumuladas

agora de encontro aos seus destinos.

Nestes dias de indecisa estação,

árvores abarrotam de flores

os seus galhos. Ipês.

Tardes frias, onde o vento e o azul

atingem a perfeição.

Para logo mais, tapetes amarelos, festivos.

Entre passos e pensamentos,

a paisagem e as línguas de uma outra cidade

se anunciam. Movimento. Burburinho.

Páginas desabrocham. Lótus.

 

Beijo!

Jane

 

 

 

cartapoema (os amores expressos de antonia)
jussara salazar

uma carta capaz de ler o avesso o reverso o direito

íntimo um desejo,

do osso ou do outro que desata

o sol com seus azuis o ouro, borboletas, papagaios urdindo

trópicos, peixes,

papoulas e guajarás -

[seus bulbos em seda rasgando o céu]

- esferas em forma de letras que escreverão um amor

e virão no remoinho-visagem de jades,

tesouro das águas

como a musselina aérea na viração ou o jaspe cor de fogo

contando do tempo do limo

do tempo-pedra do templo o rosário

e assim como disse Santa Teresa de Jesus será:

                  "como ver uma água muito clara que corre como cristal".

 

 

 

cartas
marília kubota

Curitiba, 20 de setembro de 2007.

 

Antonia,

 

é engraçado este negócio de escrever cartas. Quando adolescente, fui ardorosa sócia de Penpal Clubs e, por força de uma timidez truculenta, cultuava a escritura de um pavoroso diário confessional. Daí, quando a vida privada de todo mundo se abriu pela Internet, tive dificuldade em entender a lógica dos hotmails, orkuts e blogs. Escrever recados picadinhos. Escrever não como quem desenha, como ensinam os escritores clássicos, mas como se estivéssemos todos dentro da televisão. Muitas imagens se sucedendo uma a outra e ninguém com tempo para nada. Isto é comunicar-se, o que não tem nada a ver com  relacionar-se.

 

Estou em digressão enquanto você vai embarcar para Bombaim, Antonia. Esta Índia que no meu imaginário tem outro tempo, como sua escala musical de 12 tons. Uma espécie de Bahia mais derramada. A nossa Bahia tão criativa e criticada pela gente aqui do Sul. Baiano tem preguiça até de falar, dizem os filhos de imigrantes cuja religião é o trabalho. (Vi na Wikipedia, depois de ter escrito isto, especulações que associam o nome da cidade de  Bombaim a uma expressão portuguesa, Boa Bahia. Sincronicidade.)

 

Falo em tempos e culturas diferentes. Ainda é a Índia maravilhosa descoberta pelos ingleses que cultivamos na imaginação. Taj Mahal, Ganges, faquires. Mas você encontrará a Índia globalizada. A Índia, que depois de ser colonizada pelos ingleses, criou em Bombaim a versão da indústria cinematográfica local, Bollywood, e abriga um agitado centro financeiro.   

 

Na verdade, Antonia, achei estranho que em vez de ter escolhido qualquer cidade da Europa ou da América, você tenha decidido ir a Bombaim. Não deve ser diferente de uma cidade como São Paulo. Seus contrastes de Belindia, sendo  a Índia lá mesmo e a Bélgica uma elite alienígena. A diferença de São Paulo são as vacas transitando livremente. E a doçura dos indianos, que está no olhar que não pára de olhar e nos gestos. 

 

Mas penso se temos tempo hoje para uma civilização em progresso tardio. Mesmo que eu saiba que em Bombaim, você vai encontrar artistas idolatrados pelas massas e executivos apressados, haverá, talvez, um motorista de táxi, um porteiro de hotel, que revelará ser meio nordestino, como aqueles que encontramos em São Paulo. Que trairá o cosmopolitismo que todos devemos programar na agenda global hoje. Que será original. Não seguindo a excentricidade promovida pela maior indústria cinematográfica do planeta. Mas por ainda carregar a sua cultura na fala e no corpo e, por isso, será personagem imitado por artistas que se despersonalizam à medida que mergulham no mundo do artifício. 

 

O formigueiro humano de Bombaim me assusta, Antonia. A massa me assusta. A Poesia e a Literatura são uma força contra o desconhecido que é a massa anônima. A Poesia nomeia, singulariza. A rosa, o pão, a terra são elementos poéticos universais. Não há rosa como a rosa na poesia, porque ela é única. Não a flor na natureza que nasce, floresce e morre. É a rosa inatingível da humanidade.

 

Esta rosa singular, contra tudo e contra todos estará sempre viva. É quase a representação de um rosto, uma concretude (o professor Alfredo Bosi ensina que concreto significa crescer junto). Não é um tema poético ultrapassado, como querem os pós-modernos. Porque não existem temas batidos, mas pontos de vista e linguagens que se reproduzem, como nas histórias de Bollywood.

 

É difícil o olhar poético mostrar-se a massa, Antonia. É difícil ser uma rosa. Não só um ente original, como o hipotético motorista de táxi de Bombaim. Mas a representação de um tema universal, ou seja, um mito diferente dos criados pela indústria cultural. Um mito que remonta a nossos ancestrais, que viviam em estado de poesia.  

 

Não sei se você vai encontrar isto em Bombaim. Mas sei que encontro Bombaim todos os dias em Curitiba. Quando saio para muito longe de minha casa, que fica numa chácara no bairro de Lamenha Pequena, no norte da cidade. E vou para o centro e vejo pessoas correndo de um lado para outro. E vou para a periferia,  e vejo gente parada e sem direção.

 

Meus amigos dizem que as pessoas nestes bairros precisam de comida. Eu penso num tipo de comida que não sacia, como diz Adélia Prado. Ou no "pão entre estranhos", como dizia Clarice Lispector. Eu penso, Antonia, que os poetas e escritores não devem ser  indiferentes, não devem ser abstratos nem discutir o sexo dos anjos.

 

Que a gente saiba ver o rosto da rosa, que é o rosto de uma criança que pede para crescer em liberdade. E a liberdade é ela saber que o mais importante da vida é a vida.    

 

Em vez de escrever uma carta alegre para desejar boa viagem e que você viva grandes emoções, escrevi isto. Desculpe, Antonia, pelo pessimismo. Mas há algumas semanas um ex-professor, hoje escritor reconhecido nacionalmente, me disse que a literatura se alimenta do pessimismo. Então, em vez de escrever uma carta de boa partida, cometi literatura. Minha literatura, que denuncia vícios de um provincianismo atávico.

 

Um beijo,

 

Marília

 

 

 

 

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