edição 1 |
outubro de 2005
três pulos e uma queda conselho 1. acenda uma vela;
cicuta feito
licor
plataforma
decolagens - Não mereço isso, caralho! - É para o seu bem. (À frase canalha, esqueceu-se de acrescentar e para o bem do mundo. Foda-se, eu escolho o meu bem meu mal minha vida minha morte. Ainda que o mundo se esvaia em merda.) Não permitiram minha volta pra casa, transferiram-me da enfermaria pra esta cela minúscula, este lugar de doido. Quero ir pra casa. Quero um advogado. Quero papel e caneta. Caneta não dão. Pensam que vou me matar com uma esferográfica bic cristal? Não tentei a façanha, confesso. A primeira vez eu tinha 12 e
ela se chamava Telma. Telminha toda delicada e perfeita. Os peitos de
Telminha pareciam dois limõezinhos galegos. Aos 12 eu tinha dois melões na
frente e uma bunda enorme. Atirei-me escadaria abaixo. Lá mesmo, na escola de línguas. Quebrei braço, clavícula, fiquei toda roxa, coberta de hematomas. Perdi Telminha. Deixei de falar francês. Comecei a cair. Uma, duas, dez vezes. À noite é pior. Tenho medo do
escuro, tenho medo de sonhar com minha mãe, tenho medo de tarado. Dizem
que, por aqui, todos os enfermeiros são tarados. Falar nisso, o que mais
incomoda as pessoas? Minha boca suja ou esta vontade eternamente
insatisfeita de voar? Voar em todos os sentidos? Aposto na primeira
opção. Meu irmão esteve aqui semana passada, creio. É, acho que foi. Não interessa, meu irmão esteve aqui! Meu irmão, seus argumentos simplistas e seus diagnósticos definitivos. - Você não quer cair, minha irmã, nunca quis voar. Não é louca, nem doente. Achamos que todas essas tentativas são uma forma de chamar a atenção para seus problemas. Por isso a mantemos neste lugar, para que reflita. Concordo que temos sido relapsos em relação a você... Achamos, mantemos, temos, queremos. Quem? A família, o psiquiatra, o padre, o bispo, o juiz, ou a porra do mundo inteiro? - Oh yeah! - respondi. Meu irmão é um monte de merda envolta num terno bem cortado. Danem-se. Estou bolada,
entupida de remédios, mal consigo articular meia dúzia de palavras, sem
deixar escorrer baba pelo canto da boca. Carcereiro, por favor, tá na hora da próxima bomba. Preciso dormir pra sempre. Certa vez, na escola,
perguntaram qual animal eu gostaria de ser. Um pássaro, respondi. Há dias, desde que voltei, não sinto nada. Tem um fantasma no canto do quarto. Não sei como veio parar aqui e não me desagrada sua companhia. Juntos, em estranho torpor, observamos os movimentos do mundo pela janela. À distância é melhor. O sol brilha, arde e lambe a pele da moça. Bonita demais. O moço é insosso. Ainda penso em sexo. Em bucetas. E na Telminha. Estou muito magra, quase tão transparente quanto ele. Formamos uma bela dupla, flutuando a meio caminho de qualquer lugar. Por Deus, traga alguma coisa que me arrebente de vez. Estou morrendo. É a primeira vez que o vejo sorrindo. (O pássaro, afinal, perdeu suas asas dentro de mim.)
tríptico mortal enfim, sós Uma a uma suas lembranças voavam, mansas, pela sacada da varanda. Longas cartas do mais desvairado amor, breves bilhetes do mais enlouquecido tesão. Pétalas ressecadas de flores testemunhas do mais terno carinho. E as fotos. Lá dentro, no quarto, ele arrumava as malas. Esvaziada a lata de chocolates belgas onde armazenava toda aquela vida, voltou-se e viu os anjinhos de porcelana e o enorme porta-retratos de aço escovado e os sorrisos e o abraço e até sentiu o cheiro de mofo das fardas do exército de Napoleão. Paris, 1995, Marché aux Puces. Rasgou a foto, anjinhos e porta-retratos espatifaram-se na calçada. Lá dentro, no banheiro, ele fazia a barba. Os imensos abajures e os castiçais de estanho, duas gravuras numeradas, a fruteira de Sèvres, testemunhas de algumas festas e muitas noites de aconchego nas almofadas do sofá, amassaram alguns carros e despertaram alguns vizinhos naquele ensolarado amanhecer. Lá dentro, na cozinha, ele amassava uma banana. Com a espada de samurai dilacerou a tela que ocupava toda a parede do hall. Sempre odiara Siron Franco. E arrancou as cortinas como se fora Kate Scarlett O'Hara. Rasgou os estofados como se fora Edward sisor hands. Sofreu como se fora, de fato, o que era: uma mulher sendo abandonada. Lá fora, na curva da esquina, ele não viu o corpo que flutuava no espaço, tampouco o motorista bêbado, na contra-mão. O que a morte uniu, nem a vida separou.
Vou pra anos sem dormir. De começo, tinha medo do silêncio, e dos passos no quintal. De começo, hoje não. Era noite, lua cheia, o ano ia pelo meio, noite fria e cobertor. Vi o vulto ao pé da cama, todo feito de luar. Era azul, ainda moço, grande o tronco, forte o braço e tão negra a cabeleira. Eu menina, ele homem. Eu tão pura, ele audaz. Eu opaca, ele a luz. Eu remanso, ele trovão. O dono da minha vida, o senhor do meu destino, o patrão da minha dor. Livrei-me do cobertor, me despi da camisola, me mostrei enluarada. E fui me chegando pra perto, uma lágrima pelo rosto, um querer pelas entranhas, um suspiro sufocado. E a nuvem foi passando, foi cobrindo a luz da lua, foi trazendo a escuridão, desvanecendo o meu amor, escurecendo a minha vida, clareando a solidão. E depois, a luz do sol me encontrou adormecida, abraçada àquele nada e com marcas pelo rosto, pelo corpo, e a alma tatuada. Desde então não mais dormi. Quando é dia, fecho os olhos, mas é só pra relembrar. Quando é noite, abro os olhos, me preparo pra sonhar. Fiquei prenha desse sonho e pari aquela ausência que acalanto pela vida, tentativa de viver.
Sumo de fruta madura escorrendo pela barba, pingando do queixo nos pêlos do peito, corroendo o coração. Gosto doce arranhando a garganta, transformando em mel o fel das palavras ensaiadas pro adeus. Os suspiros ecoando na escuridão do quarto, perfurando os ouvidos, reverberando na memória de um tempo nunca acontecido. Última vez. Sabia que daquele agora pra diante seguiria em passo trôpego pelo caminho curvo que não escolhera. Última vez. Abriu os olhos e a cabeça dela pendia pra fora da cama. Seus cabelos eram o tapete onde a sombra das estrelas fazia coreografia de nunca mais. E as mãos dela, descobrindo o próprio corpo, eram caravelas sem rumo, perdidas naquele mar sem dono. Pela última vez, lhe beijaria a boca. E vestiria as roupas. E com cuidado trancaria a porta e, junto com a chave, jogaria uma folha de papel por debaixo da porta. Derradeira folha do outono daquele amor. Fruto maduro escorrendo pela vida, pingando impossibilidade na certeza da manhã. Gosto arranhado de fel no mel de um dia de distante primavera. E foi pela última vez que mordeu a maçã, que engoliu a vida.
nem
tudo o que é líquido transborda no ar parábola da saudade Havia caminhado por horas e já passava das três. Parou em frente à casa dela. Cansado demais para continuar e tarde para voltar atrás. Os cães da vizinhança uivavam e nem era noite de lua. Começou a chocar-se contra o poste, primeiro um ombro, depois o outro, as costas, cotovelos e a cabeça. Queria adaptar o corpo à sua atual pequenez. Uma tênue ansiedade não o deixava parar, quem dera fosse plena. Queria espremer-se, voltar à semente, sentiu saudades do tempo em que podia chorar. Dentro de casa ela sangrava na vagina e no ânus, enquanto o vizinho penetrava-lhe avidamente com os dedos e lambia-lhe o clitóris, tentando arrancar-lhe um suspiro de amor. Uma picareta a desenterrar pétalas. Ela tentava concentrar-se, mas havia encolhido tanto dentro daquele corpo, que parecia que ele a tocava em outra galáxia. Sentiu algo escorrendo pelas nádegas, era sangue, que ele usava para lubrificá-la e sentiu saudades do tempo em que sabia fingir. Os lobos do zôo juntaram-se ao coro de uivos e, na calçada, ele passou as mãos na testa ferida, abriu o zíper, lambuzou seu pau, esfregando-o tão fortemente, que lhe doeu o estômago. Teve saudade do tempo em que ousava atravessar a rua. O vizinho, sentindo cheiro de sangue, cravou-lhe os dentes no peito e ejaculou antes que pudesse tirar a roupa. Sentindo uma dor aguda no mamilo, ela também gozou e sentiu saudade do tempo em que sentia medo da dor. No outro lado da rua ele mordia o lábio inferior até ferir-se e nada.Vestiu-se, limpou a mão no cabelo e sentou-se no meio-fio com a cabeça encostada no poste, de cara para a luz. Quase sentiu saudade do tempo em que ela podia cegá-lo. O outro perguntou se podia ficar e foi embora sem resposta. Ainda muda ela ardia uma febre morna de fazer calar cães e lobos. Quedaram-se todos, exaustos de incompletude. Depois de um tempo, levantou-se, vestiu algo, tomou chá gelado e observou com olhos ateus o mate sublimar-se antes de lhe refrescar. Apurou os ouvidos, como se não ouvisse o mensageiro tilintar, foi até a janela confirmar se o vento desistira. Sim. Colocou um suéter num gesto automático e foi sentar-se na calçada, ao lado dele. Pela última vez ela sentiu saudade do tempo em que podia explicar que tinha sido por medo da solidão, que podia falar que estava feliz em revê-lo, que depois dele nada mais tinha sido abrigo e tudo que sentia era saudade, até da saudade. Ele sentiu saudades do tempo em que lhe escrevia poemas de amor e queria ser pai de seus filhos, do tempo em que chorava escondido e sentia saudades da solidão. Deixou-se cair para trás e deitou-se com as mãos atrás da nuca, como fazia antigamente. Ela aninhou-se em seu colo e seu brinco tatuou-lhe novamente uma estrela no braço. Do canto de seus olhos caíam lágrim as verdes translúcidas e inodoras, das mesmas que ele mijava sem parar. As duas fontes se misturavam e os envolviam completamente. Depois de secas, transformaram-se num casulo que, no dia seguinte, foi levado para exame. O plantonista do pronto socorro, cansado de estancar hemorragias madrugada adentro, mandou que levassem o invólucro para o depósito, onde foi esquecido. Ficariam ali por duas eternidades. Cinco vezes por semana e dois plantões noturnos por mês serviam de encosto para o servente do hospital, que prezava o silêncio na hora do descanso.
são toninho do desalento A noite gaguejava. Quem o
olhasse atentamente e o conhecesse um pouco, perceberia Toninho em
uma oscilação de baixíssima amperagem. E se assustaria com a sua intensidade
volátil que ao explodir atiraria, com certeza, em todas direções,
cacos mínimos cortantes e pontiagudos. Mas não o conheciam. Quando
a camareira chegou pela manhã, encontrou-o mumificado. Chamaram sua
atenção os olhos de um seco vazado, como se por eles houvessem passado
um maremoto. E as mãos, que pareciam gravetos em época de seca, grudados
aos ouvidos como quem ouvira barulho aterrador.
o segundo big bang o sol desaba
Depois Hoje é Dia do Trabalho. Por que ninguém trabalha neste dia? Escrevo só, como sempre. Sem ninguém por perto. Entro num túnel e me refugio numa pegada de mamute que são seus olhos que me querem eu já não quero mais você desisti de tudo. Estou nua com o meu crucifixo no colo e rezo todo o dia a essa hora enquanto escrevo. São alguns pais-nossos jogados no vento. Algumas ave-marias que escondo debaixo do teclado do micro. Perdida, perdida, perfídia. Por que Maria Madalena o traiu? O que me atraía em você eram suas mãos no bolso. Seu jeito tímido. Sempre parecendo esconder uma rosa despetalada sem espinhos. Por que as rosas têm espinhos? Deve ser pra cortar a mão da gente. Assim me deito em você e mais um dia se vai. Dobro a esquina da esperança de um dia poder fazer aquilo que mais quero. Só assim tiraria as minhas verdades todas de mim. Conheceria-me.
Tenho inveja das pessoas que sabem sempre o que fazer na hora certa. Eu estou sempre atrasada pro mundo. Me visto mal. Me alimento mal. Não sei colorir minhas unhas como as outras mulheres. Mas ainda estou lhe amando e lembrando da primeira vez que engoli você e comi um pedaço do seu corpo.
Escrevo pra você que amo e quero. Rezo pra você que amo e quero. Eu amo e quero ter seu corpo ainda colado ao meu. Santo, santo, santo traz você pra mim.
Não havia saída. Nenhum abismo se abria. Nenhuma porta se fechava. Nenhum abracadabra. Não conseguia ficar sozinha. Então eu me joguei dentro de uma caixa de Amplictil. Vi que no centro só estava eu comigo. Dormi e acordei pra outra vida. Estava dentro de um vidro. Quem é você, Jesus Cristo? Você é tão parecido comigo e fez a mesma coisa que eu fiz. Eu sei do meu futuro e vou me entregar a ele. A vida me agarrou e ainda não me soltou. Quando ela não me quiser, já estou preparada. Basta um abismo crescer. Nem a eternidade é pra sempre.
Querido diário, Hoje descobri que não sou deusa ou heroína. Quis ser aquela pomba que se espatifou na turbina de um avião. E agora? Por que sofro tanto? Por que é tão dilacerante respirar e fumar até a guimba? Perdi o sentido da vida, nada faz sentido. Estou encolhida feito um pássaro na muda. Deus é triste como eu? Cristo era um burocrata da dor? Sou uma lágrima que canta a última canção. Não sou uma deusa e nem uma heroína. Para quê vivi? De que adianta a cadeira 22 da Academia Brasileira de Letras? Não tenha medo
Devo aceitar Jesus e segui-lo pra sempre? Quod facis, fac citius lat. Minha vida sem mim seria tão
fácil
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