edição 18
| julho de 2007
o filho da mãe
12 anos de namoro e noivado e ela custou a perceber onde havia amarrado a sua égua. A mãe dele, que se gabava de dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade, sempre ponderava toda vez que se falava de matrimônio: pra que correr? E avisou: ele tem esse gênio, nasceu sem estopim, mas no fundo, tem coração. No fundo.
Na frente, começou com a cirurgia do nariz, que o incomodava: de perfil, lembrava um mezzo-tucano. O médico aproveitou o ensejo e, em busca de harmonia, aumentou-lhe o queixo com uma prótese de silicone. Em seguida, nova operação tratou de corrigir o desequilíbrio da bochecha. Para isso, foi preciso um lifting. Rugas, flacidez e excesso de pele sumiram no passo do mágico. Não bastou. As sobrancelhas foram destacadas com micropigmentação. O que acentuou os olhos e a necessidade de reduzir as pálpebras. Superiores e inferiores. Neto de cearense, olhar made in japan. As bochechas desequilibraram-se novamente. Outro lifting e um corte no maxilar, para tirar excesso de osso. Os olhos, outra vez. Mais um recorte nas pálpebras superiores e uma puxadinha nas inferiores. Lentes de contato. A bochecha. Lifting, pálpebras, botox, preenchimento dos lábios com ácido hialurônico. Deu problema, um monte de caroços. Tira tudo. Tenta polimetilmetacrilato. Agora sim. Era outro homem e ela gostava de beijar Angelina Jolie.
A sogra escolheu morrer três horas antes da cerimônia de casamento. O filho só ficou sabendo do óbito depois de sair da igreja, quando a procurou, sob a chuva de arroz. Festa e viagem de lua-de-mel canceladas, direto para o apartamento do casal.
No criado-mudo, ao lado da cama, guardada para sempre num porta-retrato, a foto da primeira comunhão — terninho de nycron, camisa volta-ao-mundo e sapato vulcabrás — que mereceu da mãe o único adjetivo que ela lhe dedicou durante toda a sua vida, em forma de elogio: en-gra-ça-di-nho.
Na primeira noite, olhou os seios da mulher e sucumbiu, a cabeça entre eles, soluçando. Mamãe. Mamãe. Mamãe.
em nome da mãe
Pare!, gritou ele
silenciosamente.
—
Charlie? — murmurou a esposa.
Ele
tirou o outro sapato lentamente.
Sua
mulher sorria dormindo.
Por
quê?
Porque
ela é imortal. Ela tem um filho.
Dizem
que nós, mulheres, temos inveja do pênis. Em contrapartida os homens têm
inveja de nosso útero. Porque nós geramos filhos, e de certa forma, somos
imortais. A raça humana é preservada por nós, mulheres e mães. O homem
nunca sabe se realmente o filho é seu, sempre existe a dúvida. Ele não
carrega o filho no ventre, não sente as dores do
parto.
Que
homem é capaz de se deitar na escuridão, como uma mulher, e se levantar
com um filho? Seus sorrisos suaves e gentis, guardam o segredo. Ah, que
relógios estranhos e maravilhosos são as mulheres. Elas se aninham no
tempo. Elas criam a carne que agarra e une a
eternidade.
O
homem só sente a paternidade na hora em que o filho é colocado nos seus
braços. O amor vai cresdendo aos poucos.
E
como os homens invejam e freqüentemente odeiam esses relógios cálidos,
essas esposas que sabem que vão viver para sempre. E então, o que fazemos?
Nós, homens, tornamo-nos terrivelmente mesquinhos, porque não podemos nos
prender ao mundo ou a nós mesmos ou a coisa alguma. Somos cegos para a
continuidade, tudo se quebra, cai, derrete, pára, apodrece ou foge. E,
como não podemos moldar o tempo, como ficamos? Insones,
olhando.
De
Tróia, de Esparta, do Ocidente, do Oriente, de todas as civilizações. O
herói e os tiranos querem apenas ser lembrados, querem ficar para a
eternidade. Matam e morrem em nome da mãe. Mães poderosas geram tiranos,
geram heróis, geram fracassados. Mulheres sempre puderam interromper uma
gravidez (hoje, em alguns países, com a aprovação da sociedade). Pelo
mundo, com a aprovação ou não, elas têm em suas mãos o poder da vida. O
livre-arbítrio. Em nome da mãe.
[Trechos do livro Algo sinistro vem por aí, de Ray Bradbury, Editora Bertrand]
|