edição 18 | julho de 2007
em nome da mãe

 

herança
antonia pellegrino

Herdei um pedaço seco de chão. Da minha família não espero nada. No máximo, algumas toalhas que não enxugam. Eles tiveram tudo e trataram esse tudo com desprezo. Tinham o mundo nas mãos, mas o mundo escorreu. Um braço quase foi amputado. Os fígados carcomidos. A beleza ficou nos retratos. Um homem perdeu a vida. Algumas vidas foram desperdiçadas.

 

O desatino irresponsável e a chance de ser apenas uma mulher: me foram negados. Ficou o sobrenome, a família tradicional e alguma putaria. O dinheiro não chegou, o carro não chegou, o apartamento não chegou.

 

O pedaço de chão seco é o zero. Nele é impossível ser louca e/ou ser mulher. No sentido antigo e total. Onde louco era quase, senão realmente, interno, e mulher era quase, senão realmente, casada.

 

Às vezes eu acordo ao lado do meu homem, já dormi o suficiente, mas não tive o bastante dele. É tão arraigado, arcaico, antigo. Gerações inteiras, linhagens mineiras de mulheres pacíficas, quietas, atenciosas, complacentes. E há felicidade nisso, em dedicar a vida à felicidade do outro, mesmo que para isso eu tenha que me lascar. Eu gostaria de poder me entregar ao fácil contentamento feminino/maternal, mas minha vaidade não permite. Só deixa que eu seja assim, uma mulher que quer ser homem, porque homem é melhor.

 

A herança de uma mulher aos vinte e quatro anos é não ser mulher. Dialeticamente entre a violência e delicadeza.

 

 

 

brinquedos
bruna beber

(Para maime)

uma palavra difícil: ENCONTRO
reporta-se a duas palavras mortas
ESPERANTO, ESPERANÇA

tão forte quanto o que vem
andando na frente
dizendo VIM PRA FICAR

em garrafais, de óculos
e quatrocentas lupas num letreiro
luminoso de setecentas lâmpadas

quase nada, eu disse quase nada
é decisivo como se diz decidida
a palavra DECISÃO

e nem tudo é pra ficar
além das HERANÇAS
e das sobras

algumas palavras tolas bonde, patins, bicicleta
io-iô combinam com palavras de consolo
pipoca
nutella
suspiros

gastos, palavra gasta
e sola
e saliva
e coração

voa por aí via palavras RÁPIDAS
quizz
internet
avião
café expresso

algumas palavras se espreguiçam
em LISTAS
RESUMOS
SUMÁRIOS

madrugam INSÔNIA
velando a palavra AUSÊNCIA
e o que é exclusivo supre-se:
SAUDADE

ou outras palavras ameaçadoras
ga-gagueira
ENG-gasgo
AAAAa-aa-aaaaaAAAAAATCHIM

uma palavra sábia
DIVERSÃO
uma palavra burra
DOMÍNIO

palavras de perigo
vermelho
ai
Tchau.

surpreendentes palavras
SUSTO
visita
tempestade

não esperam por palavras súbitas
ASSALTO!
morte
PAIXÃO.

 

 

 

dez reais
dominique lotte

Eu tinha 25 anos e achava-a uma velha, mas ela era apenas mais velha, para quem tem 10 anos, quem tem 25 também é velho.

Ainda bonita, um pouco menos elegante, um pouco menos perfumada, cabelos brancos, unhas sempre cor-de-sangue, sua marca registrada, foi enterrada com as unhas assim, a família exigiu. Sempre colada à sua bolsa de crocodilo made in Paris, nunca se desfazia dela, nem na cama, bolsa de mulher é a mulher, mil segredos, mil apetrechos, nunca soubemos o que guardava ali além do que imaginávamos, mas havia algo mais, desconfiávamos, nunca bisbilhotamos, deixamos que ela vivesse seu suposto segredo.

Não tinha boa saúde, pressão elevada, cedo foi-lhe diagnosticada a esclerose múltipla, era assim que os médicos justificavam naquela época a falta de memória, o alheamento, hoje seria a doença de Alzheimer, com certeza.

Tinha momentos de lucidez, esperteza no olhar, emitia conceitos de surpreendente sabedoria. Instruída, nunca deixava de ter um livro ao seu lado, de preferência, em francês, falava bem o português, melhor que o meu pai, e seu vocabulário rico, como o adquiriu?

Uma vez por semana minha mulher e eu jantávamos com ela e meu pai, meio monótono, como tudo se torna depois de algum tempo, pouca conversa, bastante impaciência do meu lado.

Café tomado, despedida e beijos, meu pai ficava na sala, ela nos acompanhava até a porta, minha mulher entrava no elevador e minha mãe me puxava pro lado, abria a mão e colocava na minha, furtiva, uma nota, murmurando no meu ouvido: "é pra você, só pra você, não diga ao seu pai" e me beijava, eu a beijava de volta e eu me juntava a minha mulher, que sorria.

"os dez reais de sempre?".

"sim!", respondia eu.

Oh, mãe, doce mãe, você que foi rainha e andou por hotéis esplendorosos, e comprava vestidos nas grandes maisons, e ainda guarda suas capas de vison com ciúme, ainda vive naquele passado quando dez reais seriam uma fortuna, oh mãe, oh mãe...

Por que choro?

 

 

 

 

 

 

 

soneto planta
florbela de itamambuca

"Recebe teu filho, minha Mãe Natureza. Ele não vai ser sepultado, vai

ser plantado na tua sombra. Para que dele nasçam novos guerreiros".

Zenilda, viúva de Chicão, cacique xukuru de Ororubá assassinado a mando

 

 

antes de virar flor eu vim do mar

quantas vezes nasci alga marinha?

por muito tempo alma de sardinha

é, meu filho, morri sem reclamar

 

a folha faz fumaça e vira ar

a faina é no respeito da tainha

caiçara estica rede com a linha

que sereia afinou no seu cantar

 

cresci igual planta gruda no ladrilho

num quintal beira rio correndo ao lado

fui estrela alma em poleiro que faz brilho

 

sei bem de onde eu vim passei cortado

por isso quando a gente faz um filho

dá nome põe respeito e deixa criado

 

 

 

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