edição 18
| julho de 2007
herança Herdei um pedaço seco de chão. Da minha família não espero nada. No máximo, algumas toalhas que não enxugam. Eles tiveram tudo e trataram esse tudo com desprezo. Tinham o mundo nas mãos, mas o mundo escorreu. Um braço quase foi amputado. Os fígados carcomidos. A beleza ficou nos retratos. Um homem perdeu a vida. Algumas vidas foram desperdiçadas.
O desatino irresponsável e a chance de ser apenas uma mulher: me foram negados. Ficou o sobrenome, a família tradicional e alguma putaria. O dinheiro não chegou, o carro não chegou, o apartamento não chegou.
O pedaço de chão seco é o zero. Nele é impossível ser louca e/ou ser mulher. No sentido antigo e total. Onde louco era quase, senão realmente, interno, e mulher era quase, senão realmente, casada.
Às vezes eu acordo ao lado do meu homem, já dormi o suficiente, mas não tive o bastante dele. É tão arraigado, arcaico, antigo. Gerações inteiras, linhagens mineiras de mulheres pacíficas, quietas, atenciosas, complacentes. E há felicidade nisso, em dedicar a vida à felicidade do outro, mesmo que para isso eu tenha que me lascar. Eu gostaria de poder me entregar ao fácil contentamento feminino/maternal, mas minha vaidade não permite. Só deixa que eu seja assim, uma mulher que quer ser homem, porque homem é melhor.
A herança de uma mulher aos vinte e quatro anos é não ser mulher. Dialeticamente entre a violência e delicadeza.
(Para maime) uma palavra difícil: ENCONTRO tão forte quanto o que vem em garrafais, de óculos quase nada, eu disse quase nada e nem tudo é pra ficar algumas palavras tolas bonde, patins, bicicleta gastos, palavra gasta voa por aí via palavras RÁPIDAS algumas palavras se espreguiçam madrugam INSÔNIA ou outras palavras ameaçadoras uma palavra sábia palavras de perigo surpreendentes palavras não esperam por palavras súbitas
dez reais Eu tinha 25 anos e achava-a
uma velha, mas ela era apenas mais velha, para quem tem 10 anos, quem tem
25 também é velho. Ainda bonita, um pouco menos
elegante, um pouco menos perfumada, cabelos brancos, unhas sempre
cor-de-sangue, sua marca registrada, foi enterrada com as unhas assim, a
família exigiu. Sempre colada à sua bolsa de crocodilo made in Paris, nunca se desfazia
dela, nem na cama, bolsa de mulher é a mulher, mil segredos, mil
apetrechos, nunca soubemos o que guardava ali além do que imaginávamos,
mas havia algo mais, desconfiávamos, nunca bisbilhotamos, deixamos que ela
vivesse seu suposto segredo. Não tinha boa saúde, pressão
elevada, cedo foi-lhe diagnosticada a esclerose múltipla, era assim que os
médicos justificavam naquela época a falta de memória, o alheamento, hoje
seria a doença de Alzheimer, com certeza. Tinha momentos de lucidez,
esperteza no olhar, emitia conceitos de surpreendente sabedoria.
Instruída, nunca deixava de ter um livro ao seu lado, de preferência, em
francês, falava bem o português, melhor que o meu pai, e seu vocabulário
rico, como o adquiriu? Uma vez por semana minha
mulher e eu jantávamos com ela e meu pai, meio monótono, como tudo se
torna depois de algum tempo, pouca conversa, bastante impaciência do meu
lado. Café tomado, despedida e
beijos, meu pai ficava na sala, ela nos acompanhava até a porta, minha
mulher entrava no elevador e minha mãe me puxava pro lado, abria a mão e
colocava na minha, furtiva, uma nota, murmurando no meu ouvido: "é pra
você, só pra você, não diga ao seu pai" e me beijava, eu a beijava de
volta e eu me juntava a minha mulher, que sorria. "os dez reais de
sempre?". "sim!", respondia
eu. Oh, mãe, doce mãe, você que
foi rainha e andou por hotéis esplendorosos, e comprava vestidos nas
grandes maisons, e ainda guarda
suas capas de vison com ciúme,
ainda vive naquele passado quando dez reais seriam uma fortuna, oh mãe, oh
mãe... Por que
choro?
soneto planta "Recebe teu filho, minha
Mãe Natureza. Ele não vai ser sepultado, vai ser plantado na tua sombra.
Para que dele nasçam novos guerreiros". Zenilda, viúva de Chicão,
cacique xukuru de Ororubá assassinado a mando antes de virar flor eu vim
do mar quantas vezes nasci alga
marinha? por muito tempo alma de
sardinha é, meu filho, morri sem
reclamar a folha faz fumaça e vira
ar a faina é no respeito da
tainha caiçara estica rede com a
linha que sereia afinou no seu
cantar cresci igual planta gruda no
ladrilho num quintal beira rio
correndo ao lado fui estrela alma em poleiro
que faz brilho sei bem de onde eu vim
passei cortado por isso quando a gente faz
um filho dá nome põe respeito e deixa criado
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