edição 17 | junho de 2007
poema de um poeta que não existe

 

1 conto
lindsey rocha

 

        Boto auréolas nos bolsos para caso de emergência. Carimbo as escadas com coturnos gastos de tanto parar. Chego à mesa do bar. Alguém fala entre aspas enormes que atrapalham o caminho da mão ao cinzeiro. A cinza não batida. Gota de química ao chão. A cor da cerveja. Vestígio de sol. A lembrança da manhã tão dourada com centeio e granola e agora a cerveja. A nuvem da cerveja. A frase embolada rouca da cerveja. E a tontura. Ao longe, a menina na porta do banheiro. O desenho da menina. O desenho da menina-palito na porta do banheiro. A bexiga cheia. As auréolas nos bolsos. Proteção é fazer cara de tudo sob controle. Ir até lá. Carimbar o espaço com olhos gastos de tanto duplo. Madrugada. A bexiga. A hora preta sem poente sem irmão. Baixar as calças em desequilíbrio. Filosofia imunda na parede. Dedos imensos na garganta. O medo. A pasta de beijo, cevada e batata frita. Água na nuca. Fadiga de sangue na garganta. Trago o ar. Mãos tremidas na maçaneta. Ao longe, alguém fala entre aspas minúsculas que enfeitam a xícara de café. A cor do café. Vestígio de manhã. A paisagem de tanta lembrança erguida no espelho do banheiro. As palavras salvas moles do café. E a dor. Um trago lúcido de regresso.

 

Lindsey Rocha é autora do livro Nervuras do silêncio (Editora 7Letras); professora de Língua Portuguesa; artista plástica e estudante de Artes Cênicas.

 

 

paisagem com ossos 
renata pallottini

 

Entre a montanha e o lago

Um esqueleto jaz.

 

Morto há mil anos-luz

Um cavalo qualquer que se desfaz.

 

É o cavalo do herói,

Vê-se por seu estilo.

Embora morto, é o dono

Do seu próprio destino.

 

Morto, mas imortal

Casa-se ao manto verde

Do campo sempre igual.

 

Ele se entende com a terra

melhor do  que a gente o faz.

Sendo assim, por que não deixá-lo

Deitado ali, a dormir em paz?

 

 

Renata Pallottini (São Paulo) fez Direito no Largo São Francisco, Filosofia na PUC e Dramaturgia na Escola de Artes Dramáticas (EAD). Estudou também em Madri e Sorbonne. Deu cursos em Santiago, Lisboa, Roma, Havana, Cuzco, Bogotá. Professora visitante da Escuela Internacional de Cine y Television (em Havana), ex-co-diretora do Centro Internacional de Teatro e da União Brasileira de Escritores, foi diretora da EAD, chefe do Departamento de Teatro da Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), assessora cultural da Secretaria de Estado da Cultura de SP e presidente da Comissão Estadual. de Teatro. Advogou e aposentou-se pela ECA. Mas bastava dizer que é poeta, dramaturga e prosadora. Que tem várias peças teatrais encenadas e publicadas. Que recebeu vários prêmios por suas obras literárias (Molière, Anchieta, Jabuti) e por traduções de teatro. Suas últimas publicações foram Um calafrio diário (poesia, 2002), Renata & other poems (poesia, 2004), O que é dramaturgia (ensaio, 2005) e Teatro completo (2006).

 

 

 

 

 

 

 

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