edição 16 | maio de 2007
cheiro

 

história de amor da princesa ozoro e do húngaro ladislau magyar
ana paula tavares

 

Quarto momento

    Vozes das meninas:

    Meu nome é terra e por isso me movo lentamente meia

volta, uma volta, volta e meia, para que o tempo me

encontre e se componha.

    Sou a companheira favorita de Ozoro do tempo da casa

redonda.

    Meu nome é pássaro, como o nome do clã a que

pertenço. Com Ozoro descobri o lago e as quatro faces da

lua, e vi primeiro que todos a cintura de salalé que se

contrai à volta das nossas terras.

    Meu nome é flor e sou especialmente preparada para

cuidar do lugar onde a alma repousa. Com Ozoro eu tenho

o cheiro, guardado no frasco de perfumes mais pequeno - o

do mistério.

 

Ana Paula Tavares (Angola, 1952). Historiadora, publicou Ritos de passagem (1985), O lago da lua (1999), O sangue da buganvília (1999), Dizes-me coisas amargas como frutos (2001); Ex-votos (2003), A cabeça de Salomé (2004) e Manual para amantes desesperados (2007).

 

 

andante passionate 
lady eveline hutchins


Desde que nos conhecemos, comendo coelhos nanicos, ele sempre teve imensas dificuldades em regurgitar os pêlos. Precisava de um pouco de entorpecimento para poder amar. Beber, fumar, engolir pílulas. Qualquer coisa que lhe pudesse ocupar a parte que diz que estamos enganados e cegos. Que plagiava chantagens. Nunca lhe foi natural isso de que sempre se fala, isso que insisto em admitir quando alguém toca no assunto, que é preciso, que é urgente, que é a vida que se esvazia senão, que sem não dá.

A paisagem era um coração gelado e murcho, insistente. Eu entendia aquilo, por dentro e por fora, mas não poderia descrever jamais, não seria justo, seria traição a uma hipocondria fiel. A cidade pedia menos, bem menos, e ele queria muito, só não sabia como pedir, e isso me deixava nervosa, pensando: amigo, você não é poeta. E, afinal, nada ali me lembrava Mário de Andrade, como quando, nunca tendo estado ali, ele me falava em Mário de Andrade sempre que pensava na cidade. Nunca gostei de cartas, não era tutora de nenhum novo Rimbaud, eu mesmo nunca havia realmente sentido orgulho, a não ser desse tipo idiota, que te faz enfiar as unhas na pele quando alguém lhe dá as costas com ironia. E nem mesmo sabia por que algo deveria me lembrar Mário de Andrade ali. Pobre Mário, atrás de amor na Praça Roosevelt.

 

E no fundo estamos, os vivos, sempre atrás de amor. Não encontramos o amor de que precisamos, porque ele é do tamanho de tudo e somos nada, uma carne exposta mal-falada. E porque não achamos tudo, e somos nada, cheguei à inevitável conclusão de que inventávamos um amor incompleto para nos assegurar de um engano consentido. Esse das novelas dubladas fora de sincronia e das páginas policiais. Mas eu, sendo nada, pelo menos agora sabia exatamente do que precisava. Eu precisava de tudo.

 

Sempre nos dávamos um longo abraço, sem jeito ele me beijava os cabelos, tentando afastá-los desastradamente da orelha. Eu dava risadinhas e olhava para ele um pouco de lado, assim de longe, com as mãos na cintura, então mordia os lábios. Eu não tinha olhos de gato, mas pensava que tinha. E muitas vezes ele viu em mim olhos de gato, de tanto eu pensar, disso tenho certeza. Olhos de gato são olhos que fazem você nunca saber. Toda a cena era muito delicada, destoante da paisagem granulada, e nós sabíamos que ela nunca existiria fora dali. Isso o entristeceu de forma surpreendente.

 

Eu não havia feito as unhas e foi com vergonha, foi com vergonha e delicadeza que ele desviou os olhos. Sorriu e entrou tirando o casaco — sempre imitava algum filme quando tinha as mãos úmidas. Olhava para as paredes, tentando me fazer pensar que se interessaria por algum objeto da sala.

 

Eu lhe disse que ele estava escrevendo feito mulherzinha. Ele ficou constrangido — sei que não posso com gim — mas sempre aqueles dentes separados e aquela espera... Então sorriu, virou-se de lado e disse que era porque vinha lendo Clarice Lispector. Eu nunca consegui ler essa mulher. Sempre disse a ele que não podia com ela, que me fazia mal, bruxaria. Ele nunca entendeu aquilo, mas feito bobo sorria, porque lembrava da sua mãe. Talvez quisesse me avisar de algo.

 

Mas finjamos que tocava Chet Baker. Finjamos que era um encontro marcado depois de dez, quinze, quanto tempo? Movíamos os membros de forma semelhante, corações sincopados, os olhos inflamados procuravam adjetivos.

 

Resolvemos sair, dar uma volta. Eu estava gripada, mas disposta, não estava exatamente de bom-humor.

 

— Antes — eu disse — preciso vestir uma roupa.

 

Eu já estava perfeitamente arrumada: blusão de lã colorido e polainas. Sempre tive os pés grandes, as pernas finas e a bunda rígida. Ele pensava nisso quando eu fui até o banheiro, tenho certeza que pensava. Pensava com uma exatidão que assustava e o deixava tenso. Que o fazia folhear livros sem ler e devolvê-los à estante.

 

Apareci de volta com outra calça, uma calça jeans apertada, e uma espécie de blusa de chita violeta. Dei a blusa na mão dele e perguntei como estava o cheiro.

 

— Um cheiro terrível — ele disse, então eu pedi que ele se virasse e vesti a blusa. Levantei os cabelos – eram os cabelos que mais lhe chamavam atenção em todas as mulheres que já havia conhecido, mas ele nunca me disse nada, e eu sabia. Certamente ele pensava como foi horrível quando eu cortei a franja, enquanto me dava o laço na blusa de chita. Eu me virei e perguntei, que tal? Ele disse que o cheiro estava realmente péssimo. Eu disse com certo orgulho que tinha usado a blusa por três dias seguidos. No final desisti da blusa, quando ele disse que não sairia comigo daquele jeito. Estávamos nos divertindo como crianças.

 

Depois então eu soltei os cabelos e apareci com um camisão de seda preto, desses de gola larga caindo no ombro, que as tias velhas sedutoras usam nos velórios precipitados. Vestia também uma outra calça, de veludo: linda calça de veludo. Ele disse que eu estava parecendo a Patti Smith. Eu gostei.

 

Vesti sapatos de salto azuis, depois sapatos pretos, depois botas texanas, fiquei descalça — as unhas órfãs — então vesti um tênis. Ele esperava vendo fotos de pessoas desconhecidas que tentavam parecer pessoas familiares. Então eu tirei o tênis, tirei a calça de veludo, ele disse: é linda a calça de veludo.

 

Saí do banheiro com uma calça jeans escura, vesti de novo o tênis, usava agora uma camisa branca. Ele me disse para vestir outra vez a calça de veludo: linda calça de veludo.

 

Eu disse para ele não me pressionar. Abri o armário e ele viu um terno de lã xadrez bem surrado e disse: você deveria ir com a calça de veludo preta e o terno xadrez, descalça. Estalei a língua no céu da boca e ele se calou. Ríamos por dentro e por fora estávamos vazios. Vazios não, tímidos. Com quem mais eu poderia conversar sobre calças de veludo e ternos? - eu pensava enquanto descíamos as escadas sem luz.

 

Subindo pela perimetral, reparei que por todos os lados havia cemitérios. Cemitérios lotados, ele me disse, onde não cabia mais ninguém.

 

— E onde enterram os mortos? — eu perguntei.

 

— Na periferia — ele disse vagamente.

 

Quem mais eu poderia deixar falar por último assim, deliberadamente? — eu pensei, mas não disse mais nada sobre os cemitérios lotados.

 

Havia contudo uma fileira com bancas de flores para os mortos. Eu lhe contei ofegante que o meu sonho romântico seria que alguém me trouxesse de carro, parasse o carro em fila dupla e fosse a uma dessas floriculturas me comprar flores. Falei isso de olhos baixos, vendada, andávamos como velhos que já viram demais, entregues, os braços dados como na festa junina, eu pensei. Mas não disse mais nada sobre as flores da morte, porque nós dois tínhamos ainda tudo para procurar, juntos. Sim, juntos! Então pela primeira vez na noite — quem será a vagabunda, meu deus, quem? — deixei de sorrir e seguimos em silêncio.

 

 

Lady Eveline Hutchins fecha o Baixo Leblon, cantando antigos funks cariocas, vestindo meia arrastão vermelha e boina, borrada diante do espelho, cabelos intactos. La Hutchins vai ao Baixo Gávea terça, quinta e domingo, a contra-gosto. Toma vinte chopes, todos até a metade. Depois disso, é capaz de acreditar no cinema brasileiro e ter pena dos miseráveis. Fuma quando bebe. Bebe quando fuma. Bebe quando não bebe. Tem uma paixão secreta por Plínio Salgado, atenuada por barbitúricos e rompantes. Usa com freqüência a expressão "quiçá". Seria da nova geração da poesia nacional se alguém soubesse a sua idade.

   

 

 

 

 

bordando flores
lui luma

 

tua presença

enroscada no cheiro do lençol

atinge o silêncio do quarto,

 

me abraça bem de pertinho

para ouvirmos o sentido do toque

guardado no peito

depois do cio acariciado

de nossa pele,

 

se ajeita

nas pétalas soltas

que regem nosso bem-me-quer

e depois de escrever ridicularidades

com sua outra metade

depois de descobrir a noite chuvosa.

 

 

Lui Luma (1977-2005). Não publicou em vida um só poema, deixando seus escritos com uma amiga, que só agora resolveu publicá-los.

 

 

 

minha visita à rainha bella
- ou a vida não cheira a baunilha
veridiana puentes

 

Não é que eu seja de toda uma santa. Muito menos uma sonsa. Mas meu suburbano coração ainda age sob o domínio da taquicardia de uma encravada culpa. Cresci sob a severidade de um pai que tinha gosto em me aplicar sovas homéricas simplesmente por achar que eu não estava no caminho certo da vida.

 

- Do jeito que vai, acaba virando uma vadia, uma prostituta - berrava o velho, nos intervalos de uma tosse crônica herdada ainda da gripe espanhola.

 

O velho era crente que o seu pesado cinto de couro e o barulho do seu escarro me dariam regulamento.

 

Batia até a minha bundinha virgem de menina-moça ficar toda tingida de vermelho, quase em sangue, em sangue mesmo, como via na ponta dos dedos. Confesso que estranhamente gostava daqueles dedos manchados e daquele cheiro, nem lavava as mãos, para ficar tomando porre daquele cheiro durante as aulas no colégio.

 

Enquanto subia, nervosa, os degraus que me levariam até você naquele casarão do Clube Dominna, rainha Bela, era como se visse, num retrovisor, a minha bundinha machucada no espelho da penteadeira do quarto da minha pobre mãe inocentemente protetora.

 

Eu estava tensa. O moço conduziu-me até a sua sala, onde conversava com os clientes do clube pela internet. Trocamos gentilezas e iniciamos uma conversa que ajudaria a mudar minha vida até então meio sem graça, sabor baunilha, como vocês dizem.

 

Sem carecer me tocar um dedo, sem cintos de couro ou quaisquer outros objetos, Bela, 38 anos, ex-professora e coordenadora de um dos maiores colégios de freira de São Paulo, me pôs aos seus pés. Chovia do teto coleiras imaginárias que me prenderiam para sempre ao mundo dos afilhados de Sade & Masoch. Ainda sem perceber, eu era a mais nova escrava da rainha. Piedade, senhor, piedade. O cheiro de vela que me lembrou as primeiras missas, a primeira confissão a derreter a culpa, aquele cheiro de igreja me molhava todinha.

 

- Desde pequenininha que eu sentia prazer em ver, nos desenhos infantis e nos filmes aparentemente ingênuos, cenas de personagens e de pessoas sendo amarradas - conta a rainha dominadora. - Também adorava os filmes de gladiadores - completa.

 

Os sofrimentos animados da TV não demoravam a se manifestar em todo o corpo de Bela. Nenhum dos seus primeiros namorados, porém, imaginava aquele desejo inadiável. Bela ardia, o cheiro de pele queimada a ferro em brasa de marcar gado que tem dono.

 

O desejo tornou-se,como se diz, irrefreável. Ela então passou a pedir para seguidos namorados que a amarrassem, batessem, fizessem alguma coisa para sair do marasmo de um sexo-baunilha - como os praticantes de S&M chamam a transa sem gosto dos ditos casais, digamos, normais.

 

Nada. Os rapazes recusavam a atender o pedido urgente da carne.

 

Até que um certo dia... Bela conheceu amigos que já praticavam as artes patenteadas por Sade & Masoch. Mudou a sua vida, largou as freiras. Hoje é a poderosa rainha do Clube Dominna, onde agora me encontro. Sabe quem também vi por lá? O poeta e pedólatra Glauco Mattoso, mas fica aqui entre nós, ele fazia uma linda conferência numa sala contígua.

 

O sadomasoquismo, na filosofia da alcova de Bela, explica o sucesso dos momentos mais sofridos das novelas, que sempre rendem picos de audiência. Daí o triunfo no mundo inteiro de teledramas como A Escrava Isaura, por exemplo. Quanto mais Isaura ia para o tronco, mas aumentava a febre no termômetro do Ibope, se é que você me entende.

 

"Me bate, pai, de novo", falo baixo, como quem reza, que é o modo de gritar bem alto. O ônibus chega na parada da Lins de Vasconcelos, Aclimação, sei que meu pai está morrendo, nas últimas das últimas, desenganado pelos médicos, mas pedirei de presente, quando todo mundo dormir em casa esta noite, uma última surra ou, pelo menos, que pingue a vela final da sua vida na bundinha da sua menina que nunca foi santa. E este ônibus que nunca chega, não morre, pai, pelo menos antes de eu chegar em casa!

 

Veridiana Puentes, 21, paulistana de sangue espanhol e nordestino, é professora de flamenco numa escola de dança da avenida Consolação, em São Paulo.

 

 

 

 

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