edição 16 | maio de 2007
cheiro

 

a morta é viva
mariza lourenço

 

 

"Na volta à vida, depois do desmaio, há duas fases: o sentimento da existência moral ou espiritual e o da existência física. Parece provável que, se ao chegar à segunda fase tivéssemos de evocar as impressões da primeira, tornaríamos a encontrar todas as lembranças eloqüentes do abismo do outro mundo. E qual é esse abismo? Como, ao menos, poderemos distinguir suas sombras das do túmulo?" In, O Poço e o Pêndulo - Edgar Allan Poe

 

 

 

- Sente o cheiro, Senhora! Fresquinho!

 

- Que cheiro?

 

- Alho-poró, Senhora. Fresquinho!

 

Foi assim que perdeu o olfato ou descobriu tê-lo perdido.

 

Desgraçadamente, ela que mal se lembrava do cheiro do filho recém-nascido, agora ansiava por um cheiro qualquer.

 

Esgotados todos os tratamentos, resolveu buscar a cura para o mal que lhe afligia por conta própria, e de maneira grotesca, convém salientar. Empregou-se numa espelunca imunda, onde, certamente, os piores odores se concentravam. Incumbida da faxina do lugar, passava os dias retirando das latrinas entupidas, urina e fezes.

 

Não agüentou, pois ainda que lhe faltasse olfato, visão e tato continuavam intactos.

 

De volta à vida costumeira, e sem qualquer ocupação que lhe preenchesse os dias, acabou por adoecer. Davam-lhe para beber caldos fortificantes, remédios e vitaminas, mas nada conseguia evitar o definhamento da alma. Ela só queria saber de dormir. E dormia o tempo todo.

 

Certo dia, no entanto, foi despertada pelo cheiro de terra úmida. Não abriu os olhos. Teve medo. Mexeu os braços e tentou rolar sobre o próprio corpo. Não conseguiu. Estava encerrada num lugar abafado e estreito. Inflou as narinas e ao cheiro de terra úmida somou-se o de uma flor conhecida de outros carnavais. Decidiu não abrir os olhos, porque sabia que, fazendo-o, não compreenderia os motivos para mais uma, entre todas, fatalidade que a atingira sem que pudesse escolher.

 

Aspirou profundamente o cheiro da pétala que se alojara rente à narina esquerda e pensou a quantos velórios e enterros havia ido por educação. Viver, para ela, não fora outra coisa senão uma obrigação árdua e insuportável.

 

Um erro fatal a encerrara numa caixa, mas lhe trouxera de volta o elo que se quebrara em sua corrente. Poderia debater-se por socorro ou deixar-se conduzir para qualquer lugar distante de tudo aquilo que sempre lhe parecera tão cansativo.

 

O ar tornou-se opresso e o cheiro, de tão intenso, materializou-se acima de seu corpo. Como um músculo nervoso, pulsante, transgressor. Ergueu a mão e quase pôde tocá-lo. E assim ficou, enquanto a consciência se lhe escapava devagar, devagar, com a mão estendida no ar.

 

Sorriu e sua boca tinha a beleza da flor dos mortos.

 

Deixou-se levar.

 

 

À guisa de ilustração: consta do acervo de casos de determinado cemitério que, certa noite, um vigia foi surpreendido por movimentação estranha dentro de uma tumba recém-fechada. Assustado, chamou os responsáveis que, desejando tranqüilizá-lo, abriram a tumba e lá encontraram um caixão semi-aberto e, dentro dele, a morta em decomposição, virada de lado, em pose absolutamente diversa daquela em que se encontrava quando foi sepultada. A família não foi Localizada, tampouco aquele que declarou o óbito.

 

 

 

o cheiro de deus 
roberta silva

- O que eu disse me trouxe aqui?

 

- De certa forma.

 

- Nunca disseram isto antes?

 

- Raro.

 

- Estou surpreso.

 

- Parece tão seguro do que sabe, deveria ter desconfiado. Pessoas, em geral, me respeitam, até céticos e agnósticos. Tem os que dizem que sou só bondade, os que me acham insensível, os que duvidam e, principalmente, os que me temem.

 

- Nunca disseram que o pecado, a dor, as guerras, os crimes hediondos têm seu cheiro?

 

- Por que disse isso?

 

- Porque sou escritor. Como manter uma história no ar por tanto tempo sem este tipo de apelo? Sua história não muda, são velhos enredos em novos cenários, nas falas de outros personagens, caricaturas dos originais, noutras locações. Você é um novelista medíocre.

 

- Você... somos íntimos agora. Então crio o mal para não perder a audiência?

 

- Claro, não há história que se sustente sem um bom drama.

 

- Seria possível.

 

- Não me faça rir, a França e sua Paris em festa é patética, boa para férias, romances tórridos (ocasionais), mas insignificante historicamente.

 

- Cabeças cortadas, queda  da Bastilha, Bonaparte...

 

- É disso que estou falando. Histórico é o horror, as paixões heróicas, as lutas contra as injustiças. O romance, a paz, a felicidade são monótonos, e...

 

- E...

 

- E você morreria se houvesse paz. Sou injusto, se sinto cheiro de suas intervenções em nossa história?

 

- (trovoada) - Reescreva.

 

- Não seja infantil, como poderia se todos seguimos sua cartilha?

 

- O alcorão, a bíblia?

 

- Não está me levando a sério, estes livros são trailer apenas e daqueles do tipo versão do diretor. Seu espetáculo é encenado em tempo real. Sem muitas novidades, devo ressaltar. Muitos já descobriram o mote, há teses sobre seus ciclos viciosos. Além do mais, como poderia um único homem numa única vida? Deixe-nos escrever nossos destinos. Talvez nos percamos, seu estrago foi grande, estamos viciados na dor, mas pelo menos a história seria realmente nossa.

 

- Auto-destruição, caos, fim-dos-tempos...

 

- Que seja. Mantém-nos presos à sua rédea curta, andamos em círculos, somos infelizes atados à sua culpa.

 

- Duvida do livre arbítrio?

 

- Para que me chamou aqui, para zombar de mim, o que há? Não quer mesmo saber o que penso, quer me convencer que estou errado. Não há livre arbítrio, sabe disso.

 

- (trovoadas e relâmpagos)

 

- Não estou assustado, se quisesse me atingir o faria em silêncio. Sou pequeno demais para a sua tempestade. O que não esperava é que minhas idéias o surpreendessem, achou que eu não tinha argumentos.

 

- (longo silêncio) Eu lhe escrevi há tempos.

 

 

cheiro da terra
ro druhens

Começava a estrada de terra e o cheiro primitivo de todos os cios. Exato instante em que o dia vira noite e todos os sons se fazem, em quase silêncio. O ver e o olhar. O nagual e o tonal. O sonho, a fantasia.

 

Phantasma, a imagem, surgida da sensação, que permita a posterior elaboração conceitual. Fatos recolhidos através de fantasmas, que traziam em bruto as formalidades que o intelecto, ativamente, abstraía depois, e classificava nas séries conceituais. Aristotélicos preceitos que a natureza ignorava. O livre jogo da imaginação criadora, não disciplinada pelas regras lógicas, ou como criadora apenas de ficções, que se afastam mais ou menos da realidade, mas irreais sempre.

 

Destoante  da paisagem era ele, seu carro, sua sofisticação intelectual. Riu de si mesmo, imaginando como a natureza lhe cobraria adaptabilidade à sua simplicidade.

 

Ser simples. Elementar, sem partes ou complicações, facilmente captado, indecomponível, composto de pouquíssimos elementos, o que não tem elementos de outras espécies aderidos. O absolutamente simples que absolutamente consiste apenas de si mesmo, em que essência - o pelo qual é o que é - e existência - seu fato de ser - são idênticos.  O relativamente simples é o que é segundo um quididade....

 

...foi quando a viu....

 

Uma forma feminina indefinida na luz difusa do entardecer. Simples. Uma mulher descalça e o cheiro primitivo de todos os cios. Os pés que pisavam a terra da estrada sabiam dos simples caminhos que ele pisava com mocassins italianos.

 

Parou o carro, abriu a porta e permitiu que o cheiro da terra, que o suor de todos os cios, sentasse a seu lado.

 

Nada disseram um ao outro. Ele, o homem, olhava os pés descalços da mulher. Ela, a mulher, olhava o embrulho entre eles. Gesto simples de entrega, sem sorrisos ou dispensáveis palavras. Ela o abriu e viu as tiras da sandália de saltos altos. Sem palavras ou dispensáveis sorrisos, calçou-as. Despiu-se da nudez, vestiu-se de mulher. Vestiu-se de todos os cios deixando que escorregasse pelos ombros o vestido. Vestida apenas com as tiras da sandália. Expôs o colo, os seios, o ventre, o sexo. Inundado sexo, cio da terra. Foi quando olhou-o nos olhos com o olhar de todas as mulheres. A mão pequena de todas as mulheres acariciou o macho por cima do jeans. Mecanismo sofisticado de zíper. Expôs o homem. A boca, a língua, o mais simples e primitivo gesto de entrega, de doação, de prazer.

 

Matar a fome e a sede. Beber da vida, o sêmen. Dar à terra, alimento.

 

Ela vestiu-se e saltou do carro. Pelo espelho ele viu um pé de sandália, esquecido na terra da estrada, quando fez a curva.

 

 

 

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