edição 15 | abril de 2007
fuga

 

3 poemas
abigail simmons
 

ampulheta

 

Meu rosto fechava no espelho

- Taciturno -

Minha fisionomia

- Taciturna -

E meus dedos fechavam em mãos

A areia

Que

Fugia:

Ampulheta de meus dias em madeira e vidro

Valsa de meus cílios aprisionando

Qualquer suspiro

Em milionésimos de impressão

Fugitivos no espraiar dos olhos nos escombros

Tombados

Meus dias são areia e lama,

Culpa da água que foge salgada.

Foge daquilo que vejo refletido Taciturno

 

 

 

pequeno dicionário da fuga

 

Fugir é uma arte - no mais eu não sou artista

Desci as escadas: a sineta tocava

A porta, fechada, as pessoas na porta,

Na porta fechada: eu não tinha descido escada alguma

Peguei o livro abri:

abandonar:deixar partir sair (por falta de apoio.)

passar transcorrer

(tudo foge e eu permaneço inerte)

debandar dispersar-se retirar-se

desaparecer, esconder-se: sumir

escapar escorrer cair escoar,derramar-se

evitar: desviar-se esquivar passar, ir-se, sumir

O fugitivo é desertor, traidor - crêem os dicionaristas

A porta abre, a sineta cai, eu não fujo

O sorriso sem graça:o crime e o castigo

 

 

 

epitáfio para emily dickinson

 

Alguém que me veja em algum retrato do passado

Talvez opine - equivocado - não vivi.

Talvez eu até pense, mas logo veja a minha substância

Sorrirei desdenhosa e -

Grave defeito de índole rebelde e calma -

Direi, ao menos a mim:

Percebi os degraus de uma casa solitária;

Provei bebidas nunca antes destiladas

Misturei-me a todo o mel de procedência duvidosa

E quando a carruagem última do meu ser apareceu

Procurei morrer sorrindo de uma beleza que esperei conceber.

 

 

Abigail Simmons nasceu em Viena, mas mora no Recife (PE) desde os 12 anos. É bacharel em Filosofia pela UFPE e trabalha em casa, fazendo traduções de filósofos alemães do século 19, (Novalis, entre outros). Gosta de literatura fantástica e pretende voltar à Áustria para visitar Salzburg e dançar o Danúbio Azul.

 

 

 

oriental hotel
izabela leal

na poeira se perdem os amantes

entre os escombros.

as esquinas com letreiros luminosos

dardejam os passantes de brasas nas mãos

e bocas transversas

de batom.

 

antes foi Cingapura

 

eles estavam ,

na solidez dos quartos de hotel,

e se desencontravam

sempre

e sempre

sob a intermitência do amor.

 

no futuro repousam as memórias perdidas

 

um comboio atravessa as noites de Hong Kong

­- o eterno desvio,

uma dobra de tempo no cetim do lençol -

enquanto as imagens passam

e rasgam

as sombras do ventre.

 

ela sacudia as pernas nos clubes noturnos

e o neon emanava um manto de andróide.

era um adágio,

solúvel em água como umas tantas palavras

anotadas em nanquim com caligrafia milenar

a escorrer pelos poros

de papel.

 

 

 

Izabela Leal (Rio de Janeiro, 1969). É graduada em Psicologia, doutoranda em Literatura Portuguesa pela UFRJ e professora da mesma disciplina. Tem ensaios publicados em revistas de literatura e alguns poemas publicados na Internet, em blogues de poesia, na Zunái - Revista de Poesia e Debates, e na revista Inimigo Rumor.

 

 

 

 

 

poslúdio
pierina pier

Vou preencher estas folhas vazias, pois ela se foi. Melhor dizer: eu a perdi? Não. Não era minha, não havia como perder. Uma vez foi minha sim. Primeiro invisível, um aviso escrito, uma conta de hormônios, uma festa, uma lista de providências, um deixar pra depois e ir olhar o céu, encontrar no espelho uma mulher, tocar as gotas pingando do seio, saber ser verdade o futuro, a hora. Cresceu lá, minha, aninhada, exibida, trazendo os olhos e as mãos dos outros para o meu umbigo. Tomou conta de mim. Depois veio a dor, aquela que as velhas diziam ser dor de esquecer. Ainda me vejo lá, na sala com tantas pessoas, cumprindo as ordens de todos e a ordem dela, me abrindo, me sentindo perdida e afogada e louca com a dor, aquela dor esquecida. Ali, pela primeira vez, a perdi, e conheci este vazio, a desordem da falta. Quando me deram a menina, chorei. Tive vontade de correr, de ir buscar um pedaço perdido em algum lugar. Chorava e não entendia o porque de tantas luzes. Ela estava ali e diziam, é linda, é sua, mas eu não conhecia aquela pessoa. Apertei-a no peito, vieram aqueles tremores e a levaram de mim, falaram com vozes graves, senti muito frio e dormi.

 

Sei. Poderia esquecer, como se fosse outra dor de parto, o horror que senti quando entendi quantos dias a deixei sozinha, enquanto eu não conseguia acordar da tristeza. Mas não vou esquecer mais nada. Não deixarei mais coisa alguma para trás. Ela se foi. Não adianta mais ter medo. Não tenho mais medo. Vou contar. É preciso. Vou contar os sonhos. Não, não eram sonhos. Eu corria sempre, sem parar, por um bosque de árvores secas e cipós. Eles me prendiam enquanto eu corria, queria gritar e não conseguia, tentava com muita força e não conseguia. Depois entendi. O sonho durou muitos meses. Deram nomes e nomes para aquele tempo. Foram me ensinando que o bosque estava guardado em mim.

 

Quando voltei era ela a dona da casa, senhora do pai, senhora das horas de todos. Aprendi o seu nome, aprendi a esconder o medo de machucá-la, aprendi o banho, o brinquedo de balançar, as cantigas e os laços no cabelo. Fiquei com ela todas as horas, vigiada, jurando esquecer o escuro, jurando não me afastar, pedindo perdão, pedindo o esquecimento.

 

Depois ele se foi, mas nós já vivíamos alegres juntas. Brincávamos muito e eu contava as viagens dele, contava os lugares aonde um dia iríamos encontrá-lo. Deixei minha tristeza em segredo, até não haver mais jeito, até quando ela me perguntou por que eu mentia. 

 

Então veio o silêncio. Um mês, dois meses, três meses, anos, perdi a conta. Íamos para lá e para cá, cada uma nos seus assuntos. Eu pensava, ela está assustada, está triste, ela se sente abandonada, ela sabe que ele não vai voltar, ela pensa que foi minha culpa. Pensava, meu deus, não tive culpa. O doutor me dizia que eu não tinha culpa, que era melhor levá-la para conversar com ele, quem sabe também para ela os comprimidos ajudassem a criar coragem de ir buscar os outros, os amigos, os namorados, pois ela estava crescida. Procurava por ela, a chamava de linda, e dizia vamos cuidar da pele, vamos cortar o cabelo, vamos ver um vestido bem lindo. Ela vinha comigo, mas não respondia, não sorria e escrevia neste caderno. Sentava à beira da porta e olhava, olhava, olhava. Senti que a estava perdendo. E não de novo, deus meu, não de novo, não tudo que me restou, não esta última chance de amor. Levei-a ao encontro do homem branco, como ela escreveu. Ele perguntava, eu respondia, ela em silêncio, com a mão gelada, olhando para as mãos dele sobre a mesa. Ela foi comigo, por que eu disse que seria bom. Deus sabe como eu queria que ela fosse alegre, que ela brincasse de novo, que ela pudesse amar. O homem perguntava, eu respondia, ela se encolhia no silêncio. Ele explicava tudo e contava o que acontecia como se fosse um oráculo. Eu não sabia, não poderia saber, não poderia imaginar.

 

Sei que posso guardar comigo, enterrar junto com ela, junto com aqueles monstros que me perseguiram quando ela nasceu, no mesmo buraco onde enfiei a dor de me ver sozinha, diante da menina triste, cada vez mais trêmula diante dos outros. Mas desta vez eu não vou fazer isto. Eu vou dizer a alegria depois dos primeiros dias. Ela tomava o remédio. Ela fazia tudo que eu pedia, sempre fez, mesmo quando em silêncio. Eu percebia a melhora. Ela andava pela casa mais leve, me olhava nos olhos, perguntava por que eu nunca saía, me contou um encontro, disse ter uma amiga. Foi até a uma festa, no clube. Vi também as outras coisas. Vi as noites em claro. Vi que ela roubava umas pílulas da caixa e não fiz nada. Ela parecia tão melhor. Ela falava comigo. Ela falava comigo. Ela falava. Uma noite veio ao meu quarto e me beijou. Deitou-se comigo, como nos tempos antigos. Naquela noite eu estava azul.

 

Agora eu sei. Nos primeiros dias, ela encontrou um homem velho. Não, não foi sonho, ela escreveu aqui. Não foi sonho, foi como meus dias no bosque, mas não havia medo. Ele era o pai, muito velho, em um tempo do tempo dela. Contou-lhe que as pílulas eram uma poção mágica. Contou que ela ia se tornar uma flor e nunca mais sentiria medo. E ela começou a experimentar. Falou com aquela outra menina. Ela escreveu que a menina era dourada. Foi com ela à festa, na beira do lago, por saber que lá encontraria o velho. Ele voltava todas as noites e a ensinava, contava histórias, embalava na rede. Ensinava estrelas para ela. Ensinou como fazer. Disse para ela engolir mais, mais e mais, os comprimidos brancos, as bolinhas mágicas e foi lhe mostrando como as estrelas se mexiam formando desenhos de flores e de plantas d'água. No último dia ele disse: beija a mulher azul e vai para o lago.

 

Deve tê-la conduzido pela mão. Deve ter dito: basta deitar-se.

 

 

 

 

Pierina Pier nos anos 20 usou piteiras. Nos 30, experimentou charutos. Nos 40, foi à Guerra. Nos 50, ao cinema. Nos 60, freqüentou festivais e viveu atrás da Cortina de Ferro. Nos 70, viajou de carona. Nos 80, tornou-se executiva de uma multinacional, ganhou seu primeiro e único milhão, debulhado nos 90 em ações em favor de minorias sociais. Desde o início deste século, vive em Curitiba, observa nuvens e araucárias, pratica meditação em horas certas e, nas vagas, lê e escreve. 

 

 

balada da cruz machado
renata amador
 

"tem piedade, satã, desta longa miséria!"

        charles baudelaire

 

uma rua à queima-roupa

curta, brilhante, sem fôlego

(puta nova mas ancestral)

rua-faca, rua-vício

a cruz machado termina

nos pés de uma catedral.

alguém além de deus e

da polícia e taxistas

e putas e vigaristas

cafetões e travestis

sabe que depois das 20

nas calçadas do acinte

beijam latas os guris?

que se agridem por farelos?

que se juram por centavos?

filhos do sangue e do escarro

talhando derrota para

o horror de bicho caçado

que, de manhã, tresnoitara...

para as gargantas gastarem

para os alvéolos gritarem

nesta imunda forja da

convulsão respiratória

este pão da falta de ar

na mesma lama ofertória

a ninguém ou coisa alguma

que a raiva de mendigar

que a fissura que verruma:

pedra pedra pedra pedra

quem dentre vós estiver

sem pecado

que fume a primeira pedra.

e as putas e travestis

não se prestam a outro talho

juntam seus pobres dinheiros

entre um cu e dois caralhos

e como sob a extensão

de um cargueiro embaraçado

prendem a respiração

pra sentir melhor o trago

pra soltar as almas junto:

pedra pedra pedra pedra

quem dentre vós estiver

sem pecado

que fume a primeira pedra.

em seu lado esquerdo a rua

rebrilha em néon e espelhos

ali se guarda a fortuna

de entrecoxas e de seios:

entre flores volitantes

homens ébrios dão risada

e depois como se dantes

sozinhos voltam embora

tristes, pisando nas asas.

fora do agito das boates

polícia é sempre polícia

mas também pobre coitada:

grita, bate, extorque, ofende

e se, após, solta sorrindo

é por que já mordeu rente.

dali a trinta minutos

numa curva mais rasante

arma em punho e voz rascante

revistam mais um otário

um pedreiro miserável

que voltava de assaltar

o som novo dalgum carro:

pedra pedra pedra pedra

quem dentre vós estiver

sem pecado

que fume a primeira pedra.

sob as marquises da rua

ou em ruelas bem próximas

que por vazias e umbrosas

são melhor acoitamento

e, em especial, no centro

pela praça tiradentes

(desaguadouro e monturo)

de homens sem qualquer futuro

traficantes e usuários

usuários traficantes

consumindo a criptonita

qual se todas suas vidas

consistissem num segundo...

uma rua à queima-roupa

curta, brilhante, sem fôlego

de uma miséria ancestral

rua-vício, rua-oxímoro

a cruz machado termina

nos pés de uma catedral

 

 

 

Renata Amador (Cornélio Procópio, Paraná, 1980), Poeta e escritora. Ex-usuária de drogas. Há seis anos, vive em Curitiba. Recém-formada em Letras pela UFPR. Atualmente, trabalha como clown em festas de criança. Alguns de seus poemas estão publicados nas revistas literárias Barricadas e O Maloqueiro. É co-roteirista do curta-metragem Voz dos réprobos e autora dos livros Um copo de sol (poesia) e Pássaros no quarto (histórias infantis, no prelo).

 

 

 

 

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