edição 15
| abril de 2007
3 poemas ampulheta Meu rosto fechava no
espelho - Taciturno
- Minha fisionomia
- Taciturna
- E meus dedos fechavam em
mãos A
areia Que Fugia: Ampulheta de meus dias em
madeira e vidro Valsa de meus cílios
aprisionando Qualquer
suspiro Em milionésimos de
impressão Fugitivos no espraiar dos
olhos nos escombros Tombados Meus dias são areia e lama,
Culpa da água que foge
salgada. Foge daquilo que vejo
refletido Taciturno pequeno dicionário da
fuga Fugir é uma arte - no mais
eu não sou artista Desci as escadas: a sineta
tocava A porta, fechada, as pessoas
na porta, Na porta fechada: eu não
tinha descido escada alguma Peguei o livro
abri: abandonar:deixar partir sair
(por falta de apoio.) passar transcorrer
(tudo foge e eu permaneço
inerte) debandar dispersar-se
retirar-se desaparecer, esconder-se:
sumir escapar escorrer cair
escoar,derramar-se evitar: desviar-se esquivar
passar, ir-se, sumir O fugitivo é desertor,
traidor - crêem os dicionaristas A porta abre, a sineta cai,
eu não fujo O sorriso sem graça:o crime
e o castigo epitáfio para emily
dickinson Alguém que me veja em algum
retrato do passado Talvez opine - equivocado -
não vivi. Talvez eu até pense, mas
logo veja a minha substância Sorrirei desdenhosa e -
Grave defeito de índole
rebelde e calma - Direi, ao menos a
mim: Percebi os degraus de uma
casa solitária; Provei bebidas nunca antes
destiladas Misturei-me a todo o mel de
procedência duvidosa E quando a carruagem última
do meu ser apareceu Procurei morrer sorrindo de uma beleza que esperei conceber.
oriental
hotel na
as dardejam os e de na e se
desencontravam e no - o uma e
rasgam as e o anotadas a de
Izabela Leal (Rio de Janeiro, 1969). É graduada em Psicologia, doutoranda em Literatura Portuguesa pela UFRJ e professora da mesma disciplina. Tem ensaios publicados em revistas de literatura e alguns poemas publicados na Internet, em blogues de poesia, na Zunái - Revista de Poesia e Debates, e na revista Inimigo Rumor.
poslúdio Vou preencher estas folhas
vazias, pois ela se foi. Melhor dizer: eu a perdi? Não. Não era minha, não
havia como perder. Uma vez foi minha sim. Primeiro invisível, um aviso
escrito, uma conta de hormônios, uma festa, uma lista de providências, um
deixar pra depois e ir olhar o céu, encontrar no espelho uma mulher, tocar
as gotas pingando do seio, saber ser verdade o futuro, a hora. Cresceu lá,
minha, aninhada, exibida, trazendo os olhos e as mãos dos outros para o
meu umbigo. Tomou conta de mim. Depois veio a dor, aquela que as velhas
diziam ser dor de esquecer. Ainda me vejo lá, na sala com tantas pessoas,
cumprindo as ordens de todos e a ordem dela, me abrindo, me sentindo
perdida e afogada e louca com a dor, aquela dor esquecida. Ali, pela
primeira vez, a perdi, e conheci este vazio, a desordem da falta. Quando
me deram a menina, chorei. Tive vontade de correr, de ir buscar um pedaço
perdido em algum lugar. Chorava e não entendia o porque de tantas luzes.
Ela estava ali e diziam, é linda, é sua, mas eu não conhecia aquela
pessoa. Apertei-a no peito, vieram aqueles tremores e a levaram de mim,
falaram com vozes graves, senti muito frio e dormi.
Sei. Poderia esquecer, como
se fosse outra dor de parto, o horror que senti quando entendi quantos
dias a deixei sozinha, enquanto eu não conseguia acordar da tristeza. Mas
não vou esquecer mais nada. Não deixarei mais coisa alguma para trás. Ela
se foi. Não adianta mais ter medo. Não tenho mais medo. Vou contar. É
preciso. Vou contar os sonhos. Não, não eram sonhos. Eu corria sempre, sem
parar, por um bosque de árvores secas e cipós. Eles me prendiam enquanto
eu corria, queria gritar e não conseguia, tentava com muita força e não
conseguia. Depois entendi. O sonho durou muitos meses. Deram nomes e nomes
para aquele tempo. Foram me ensinando que o bosque estava guardado em
mim. Quando voltei era ela a dona
da casa, senhora do pai, senhora das horas de todos. Aprendi o seu nome,
aprendi a esconder o medo de machucá-la, aprendi o banho, o brinquedo de
balançar, as cantigas e os laços no cabelo. Fiquei com ela todas as horas,
vigiada, jurando esquecer o escuro, jurando não me afastar, pedindo
perdão, pedindo o esquecimento. Depois ele se foi, mas nós
já vivíamos alegres juntas. Brincávamos muito e eu contava as viagens
dele, contava os lugares aonde um dia iríamos encontrá-lo. Deixei minha
tristeza em segredo, até não haver mais jeito, até quando ela me perguntou
por que eu mentia. Então veio o silêncio. Um
mês, dois meses, três meses, anos, perdi a conta. Íamos para lá e para cá,
cada uma nos seus assuntos. Eu pensava, ela está assustada, está triste,
ela se sente abandonada, ela sabe que ele não vai voltar, ela pensa que
foi minha culpa. Pensava, meu deus, não tive culpa. O doutor me dizia que
eu não tinha culpa, que era melhor levá-la para conversar com ele, quem
sabe também para ela os comprimidos ajudassem a criar coragem de ir buscar
os outros, os amigos, os namorados, pois ela estava crescida. Procurava
por ela, a chamava de linda, e dizia vamos cuidar da pele, vamos cortar o
cabelo, vamos ver um vestido bem lindo. Ela vinha comigo, mas não
respondia, não sorria e escrevia neste caderno. Sentava à beira da porta e
olhava, olhava, olhava. Senti que a estava perdendo. E não de novo, deus
meu, não de novo, não tudo que me restou, não esta última chance de amor.
Levei-a ao encontro do homem branco, como ela escreveu. Ele perguntava, eu
respondia, ela em silêncio, com a mão gelada, olhando para as mãos dele
sobre a mesa. Ela foi comigo, por que eu disse que seria bom. Deus sabe
como eu queria que ela fosse alegre, que ela brincasse de novo, que ela
pudesse amar. O homem perguntava, eu respondia, ela se encolhia no
silêncio. Ele explicava tudo e contava o que acontecia como se fosse um
oráculo. Eu não sabia, não poderia saber, não poderia
imaginar. Sei que posso guardar
comigo, enterrar junto com ela, junto com aqueles monstros que me
perseguiram quando ela nasceu, no mesmo buraco onde enfiei a dor de me ver
sozinha, diante da menina triste, cada vez mais trêmula diante dos outros.
Mas desta vez eu não vou fazer isto. Eu vou dizer a alegria depois dos
primeiros dias. Ela tomava o remédio. Ela fazia tudo que eu pedia, sempre
fez, mesmo quando
Agora eu sei. Nos primeiros
dias, ela encontrou um homem velho. Não, não foi sonho, ela escreveu aqui.
Não foi sonho, foi como meus dias no bosque, mas não havia medo. Ele era o
pai, muito velho, em um tempo do tempo dela. Contou-lhe que as pílulas
eram uma poção mágica. Contou que ela ia se tornar uma flor e nunca mais
sentiria medo. E ela começou a experimentar. Falou com aquela outra
menina. Ela escreveu que a menina era dourada. Foi com ela à festa, na
beira do lago, por saber que lá encontraria o velho. Ele voltava todas as
noites e a ensinava, contava histórias, embalava na rede. Ensinava
estrelas para ela. Ensinou como fazer. Disse para ela engolir mais, mais e
mais, os comprimidos brancos, as bolinhas mágicas e foi lhe mostrando como
as estrelas se mexiam formando desenhos de flores e de plantas d'água. No
último dia ele disse: beija a mulher azul e vai para o
lago. Deve tê-la conduzido pela
mão. Deve ter dito: basta deitar-se.
Pierina Pier nos anos 20 usou piteiras. Nos 30, experimentou charutos. Nos 40, foi à Guerra. Nos 50, ao cinema. Nos 60, freqüentou festivais e viveu atrás da Cortina de Ferro. Nos 70, viajou de carona. Nos 80, tornou-se executiva de uma multinacional, ganhou seu primeiro e único milhão, debulhado nos 90 em ações em favor de minorias sociais. Desde o início deste século, vive em Curitiba, observa nuvens e araucárias, pratica meditação em horas certas e, nas vagas, lê e escreve.
balada da
cruz machado "tem piedade, satã, desta
longa miséria!"
charles baudelaire uma rua à queima-roupa
curta, brilhante, sem fôlego
(puta nova mas ancestral)
rua-faca, rua-vício
a cruz machado termina
nos pés de uma catedral.
alguém além de deus e
da polícia e taxistas
e putas e vigaristas
cafetões e travestis
sabe que depois das 20
nas calçadas do acinte
beijam latas os guris?
que se agridem por farelos?
que se juram por centavos?
filhos do sangue e do
escarro talhando derrota para
o horror de bicho caçado
que, de manhã,
tresnoitara... para as gargantas gastarem
para os alvéolos
gritarem nesta imunda forja da
convulsão respiratória
este pão da falta de ar
na mesma lama ofertória
a ninguém ou coisa alguma
que a raiva de mendigar
que a fissura que
verruma: pedra pedra pedra pedra
quem dentre vós estiver
sem pecado
que fume a primeira pedra.
e as putas e travestis
não se prestam a outro talho
juntam seus pobres dinheiros
entre um cu e dois caralhos
e como sob a extensão
de um cargueiro embaraçado
prendem a respiração
pra sentir melhor o trago
pra soltar as almas junto:
pedra pedra pedra pedra
quem dentre vós estiver
sem pecado
que fume a primeira pedra.
em seu lado esquerdo a rua
rebrilha em néon e espelhos
ali se guarda a fortuna
de entrecoxas e de seios:
entre flores volitantes
homens ébrios dão risada
e depois como se dantes
sozinhos voltam embora
tristes, pisando nas asas.
fora do agito das boates
polícia é sempre polícia
mas também pobre coitada:
grita, bate, extorque,
ofende e se, após, solta sorrindo
é por que já mordeu rente.
dali a trinta minutos
numa curva mais rasante
arma em punho e voz rascante
revistam mais um otário
um pedreiro miserável
que voltava de assaltar
o som novo dalgum carro:
pedra pedra pedra pedra
quem dentre vós estiver
sem pecado
que fume a primeira pedra.
sob as marquises da rua
ou em ruelas bem próximas
que por vazias e umbrosas
são melhor acoitamento
e, em especial, no centro
pela praça tiradentes
(desaguadouro e monturo)
de homens sem qualquer
futuro traficantes e usuários
usuários traficantes
consumindo a criptonita
qual se todas suas vidas
consistissem num segundo...
uma rua à queima-roupa
curta, brilhante, sem fôlego
de uma miséria
ancestral rua-vício, rua-oxímoro
a cruz machado termina
nos pés de uma catedral
Renata
Amador (Cornélio Procópio,
Paraná, 1980), Poeta e escritora. Ex-usuária de drogas. Há seis anos, vive
em Curitiba. Recém-formada em Letras pela UFPR. Atualmente, trabalha como
clown em festas de criança. Alguns de seus poemas estão publicados nas
revistas literárias Barricadas e O Maloqueiro. É co-roteirista do
curta-metragem Voz dos réprobos e autora dos livros
Um copo de sol (poesia) e Pássaros no
quarto (histórias infantis, no
prelo).
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