edição 14 | março de 2007
cinema

 

"não matarás"
jussara salazar 

 

 

I

 

"Coisa de cinema" é coisa bonita. "Coisa de cinema" é beijo na boca, é morrer de amor.  Quando se atinge o quase irreal da suprema ficção, quando os heróis alçam vôo pelos céus encantados, quando se acredita que se é imortal  — mesmo na vida mesmo na morte —,  quando o vampiro entra em cena ou passa a moça, o sol se põe. Coisa de cinema.

 

II

 

Aquele dia eu vi a cena com perplexidade: o homem degolado. Eu o reconheci sob sua expressão de agonia [rigor mortis], a cabeça pendente e a pele, de uma tonalidade espectral, surgiram na tela. O filme, o enforcamento do tirano, ali, banal e corriqueiro. Certo que o homem havia destruído as mil e uma noites, os palácios, os tesouros milenares e os tesouros da vida de outros homens como ele. Mas a suprema invenção do real estava materializada naquela não-beleza cotidiana, no inverso do humano, naquela bizarra desnatureza, cinema sem luz.

 

III

 

No outro dia quando alguém disse "é coisa de cinema", a moça voltou-se e viu, o mundo pela primeira vez.

 

 

o dia em que eu salvei o mundo
marília kubota
 

Antes de pegar o carro e sair em alucinante perseguição automobilística pelas ruas, furando sinais, desviando por um átimo de caminhões e placas de vidro, tirei os óculos.

— Por quê? — perguntou Júlia, a gêmea boazinha, olhando de binóculos pela janela para ver se avistava Júnia, a gêmea má no prédio vizinho. — Esta armação de carbono azulada te deixa com a cara do Jô.    

Expliquei que se não, não podia ser o mocinho do filme.

— Quem usa óculos é o nerd que lida com computador.

Ela usava um vestido vermelho colante, que me deixava louco de tesão. Queria  jogar ela no chão e fazê-la gemer por um chicabon, mas não tinha tempo.

— Preciso salvar o mundo — disse, consultando a agenda. Não estava na hora de ir ao banheiro. Tivemos um jantarzinho romântico à luz de velas mas a gente nunca via a comida que estava comendo. Quase engasguei quando o celular tocou e ouvi a voz roufenha de meu arqui-inimigo Homem do Carro do Sonho*

— É o carro do sonho que está passando — ele disse. Armei uma bomba no Shopping Estação. Não adianta chamar o Tigre nem a Cia.

— O que você quer?

— Um helicóptero, um volante para jogar na megasena e a gêmea boazinha.

O Homem do Carro do Sonho era hilariantemente medíocre. Um helicóptero e a gêmea boa, vá lá. Mas um volante da megasena? Que medíocre. Por que não pediu um saco com 1 milhão de dólares em notas de 100 sem ordem de numeração?

— Tá certo. Como eu faço pra te entregar?

Ele disse que ia ligar pro meu celular em meia hora.

Tirei os óculos, agarrei Júlia pela cintura. Pelo binóculo ela jurava ter visto um OVNI pousar no terraço do prédio vizinho.

— E estão saindo uns homenzinhos com hepatite, todos uniformizados. Parecem aquelas túnicas chinesas com um logotipinho que não consigo ver direito.

— Você tá trocando as bolas. Este uniforme é do Capitão Kirk e do Spock — eu disse, perdendo a paciência.

Descemos até a garagem, mas antes de chegar até o carro avistamos um dos aliens.

— Leve-me até seu líder!

Cochichei pra Júlia.

— Você não disse que tinha acabado de ver eles aterrissarem no prédio vizinho? Como que...

— ...vieram aqui tão rápido? Nunca viu aqueles tubos de teletransporte?

— Em Curitiba só tem tubo de ligeirinho.

— É. Tá cada dia mais rapidinho.

Júlia me beliscou.

— Nem importo que esta história seja sem pé nem cabeça. Mas um clichê atrás de outro, dá  na vista não.

Júlia, a típica curitibana de topete: não fica bem isto e aquilo, o que os vizinhos vão pensar. A gêmea má, Júnia, não estava nem aí pra o que os outros iam pensar. Por isto era impopular.    

Fugimos do marciano, que sacou um revólver e começou a atirar.

— Não disse — lamuriou Júlia. Como que um alienígena saca um revólver e começa a atirar na gente. Aiai.

Júlia estava ficando muito pernóstica para meu gosto.

— É pistola a laser, Júlia. Lei-ser. Vamos correndo pro shopping.

— É, parece que a gente tá no meio do samba-enredo da Ex-cola de Samba Unidos do Botão...

— Que escola de samba é esta, guria?

Demos de cara com o Hélio Leites* e a Efigênia Princesa do Papel de Bala*.

— É a nossa ex-cola, curitiboca!

Hélio e Efigênia convidaram a gente pra tomar uma choco-milk e um cachorro-quente com duas vinas. Eu disse que precisava salvar o mundo. Hélio colou um botãozinho "Só Jesus Salva" em mim e em Júlia e convenientementes abençoados, adentramos o shopping.

— Que massa. Um filme aqui em Curitiba com Hélio e Efigênia. Ah ah.

Júlia é meio cult-movie, eu ia cutucar. O Homem do Carro do Sonho ia arrepender-se amargamente por tê-la pedido como resgate.

 

Lembrei que ainda não tinha comprado a cartela da megasena nem ligado pra polícia  pra pedir o helicóptero.  O celular tocou e eu me estressei.

— Porra!

— É o carro do sonho que está passando.

— Você sempre tem que fazer merchand...

— Eu tô vendo a Júlia mas cadê o volante da megasena e o helicóptero?

— O volante tá no meu bolso. O helicóptero, no terraço — menti.

— Então a gente se encontra lá em cima. 

Júlia começou a ficar desconfiada: — Que negócio é este de helicóptero no terraço?

— Vai explodir quando levantar vôo.

— Isto eu sei. E você vai ficar pendurado por uma escadinha de corda.

— É. Eu pulo do helicóptero minutos antes da explosão.

— Mas não é isto. Pra que um helicóptero, a esta altura?

— O Homem do Carro do Sonho pediu, Júlia. Ele colocou uma bomba aqui no shopping.

— Bomba!

Ela passou a dar gritinhos histéricos.

— Bomba! Bomba!

As pessoas olhavam com desdém e pensavam se tratar de uma performance do Festival de Teatro. 

Comprei uma cartela da megasena e subimos até o terraço do shopping. Ouvimos o inconfundível bordão:

— Sonho, sonho, quem quer sonho. Aqui tem sonho. É o Carro do Sonho que está passando, freguesa. Onde é que tá o helicóptero?

— Se você prestar bem atenção não dá pra um helicóptero pousar aqui.

Ele arrebatou Júlia de mim e foi em direção a um aparelho detonador.

— Eu pensava que você podia fazer isto por controle remoto — Júlia comentou.

— Eu posso, mas não comprei pilha.

Eu tinha que pensar rapidamente num meio de evitar que o Homem do Carro do Sonho detonasse o shopping e depois prosseguisse com seu plano de destruir o mundo.

Uma nuvem radiante apareceu por trás deles. Era o Ligeirinho Espacial dos ETs.

— Espera aí. Quem vai destruir a Terra somos nós.

— Não é o efeito estufa?!? — Júlia perguntou primeiro pro Homem do Carro do Sonho e depois, como ele estava entrando em negociação com os aliens, pra mim.

— É, vai ver que este é o nickname deles.

— Eu acho que estes aliens têm até sotaque paranaense — comentou Júlia, soltando a piadinha  pra mim.

— Eles têm um aparelho intercomunicador interestelar — eu respondi. A calma dela era incrível. Talvez porque soubesse que a mocinha sempre fica com o mocinho no final. 

O Homem do Carro do Sonho ficou estressado. 

— Sou eu quem vai dominar o mundo.

— Pra quê, pra todo mundo comer sonho de nata, de doce de leite, de goiaba...? — perguntei. 

— É. Mais ou menos isto. Eu quero superar o McDonald!

— Mas você é um ícone da cultura suburbana em Curitiba! Não faça isto, não se renda. 

— Somos nós que vamos dominar o mundo — disseram os ETs, batendo o pé e acendendo as luzinhas do tênis Nike.

Enquanto estavam brigando, Júlia fugiu e veio para o meu lado.

— Aposto que daqui a pouco os ETs vão começar a falar de terrorismo.

— Soubemos que existem terroristas em Curitiba.

— Não disse? Eu não disse?

O Homem do Carro do Sonho quis fugir, mas um dos ETs apontou para ele a pistola laser.

— Ah, agora não é mais revólver.

Ele virou uma pasta amarela. Júlia fez uma cara de nojo.

— Vocês tem mesmo planos de dominar o mundo?

Os ETs tiraram a máscara verde e mostraram que eram o Capitão Kirk e o Spock.

— Não precisamos. Já dominamos.

— Eu sabia! — disse Júlia.

— Shhh — fiz sinal pra ela ficar quieta.

— Vocês estão liberados. Mas não se esqueçam: estamos de olho. E partiram no Ligeirinho Espacial. Botei os óculos de novo, cansado de ser um herói de cinema.

 

 

*Personagens do folclore urbano de Curitiba

 

 

 

ryan o'neal é culpado
mariza lourenço
 

senhoras, atirem-me à fogueira: apaixonei-me por ryan o'neal lá pelos idos de 70. pelo bom-mocismo hollywoodiano, pelo marido arrependido e amante apaixonado da esposinha terminal. digo, em minha defesa, que os tempos eram outros. talento, para mim, era uma mistura de possibilidades que as personagens, dentro das telas, me proporcionavam de vivenciar algo bonito do lado de fora. acreditava em amor abnegado, em amor feito de perdão. eu acreditava que não chegaria aos 30.

cheguei aos 20 com tesão. tesão por Al Pacino. por tudo aquilo de talento. pela identificação imediata com aqueles olhos invasivos. àquela altura eu achava o amor um exercício inútil da alma. valia a cabeça em transformação. valia o posicionamento político, o cinema de Costa Gavras.  e eu ainda acreditava que 30 anos era tempo demais pra se viver.
sou do século passado! alguém já parou pra pensar que é do século passado?
meus 30 anos já se foram há muito tempo. portanto, e se me permitem um pouco de arrogância, sou a soma de todos os filmes que assisti. vivi algumas histórias que se adequam às telas e deixei de viver outras tantas por incompetência. minha não, bem entendido, pela incompetência daqueles que não compreenderam minhas ânsias.
aos 40, voltei a acreditar no amor dos primeiros tempos. o tesão por Al Pacino continua o mesmo, acrescido, naturalmente, pelas sempre bem-vindas e quentes companhias de namorados ocasionais. ryan o'neal, ora, a gente sabe, não era tão bonzinho assim, mas continua cumprindo o papel de mocinho dentro da minha história.
e desta paixão definitiva pela arte que alimenta a vida.

 

 

 

les ailes du desir  
roberta silva

Fomos separados em filas indianas, sete ao todo. Cada um trazia consigo um papel com o número da que devia ocupar. Tirando a fila três, onde predominavam crianças, nenhum perfil etário, étnico ou social específico era evidenciado de imediato.

 

Naqueles corredores humanos percebia-se apenas a seriedade dos que, junto comigo, formavam a fila sete. Pressentíamos o porvir. Só um homem armado e munido de um rádio estava encarregado de manter a ordem. Tinham certeza, talvez, que não nos rebelaríamos. Raramente o fazemos. Antes daquela enfrentamos outras duas por longo período. A primeira para nos dizer a qual fila pertenceríamos e a outra para comprarmos nossa comida. Nem todos podiam passar pela segunda, mesmo assim, pacíficos.

 

Sabemos que não deveríamos esperar tanto? Que nos ignoram, acomodam-nos precariamente por horas, não nos tratam com respeito, apesar de sermos iguais, que não deveria ser assim?

 

Lembro-me de meu pai agora. Porcerto, se envergonharia de meus questionamentos e me pediria para agir civilizadamente. Anos depois de ter largado a farda ainda traz o estigma da subserviência.

 

Finalmente minha fila anda. Quando chego à catraca um rapazote pega minha papeleta, rasga-a à beira e diz para eu me encaminhar para a porta à esquerda, sem olhar em meus olhos.

 

Se eu sumisse agora, se fosse para outro lado ele notaria? Uma trilha de pequenas luzes no chão do corredor escuro mostram o caminho. Parece um aeroporto à noite visto do alto. Nunca voei, mas esta imagem é totalmente nítida e real para mim, como se a tivesse vivido inúmeras vezes. Por isso estou aqui?

 

A sala ainda está vazia e escolho um lugar bem no meio, perto do corredor de saída. Verifico assim que acomodo qual a melhor rota de fuga, herança de meu pai. A luz é fraca, mas daria para ler um pouco, me perco em devaneios.

 

Quando dou por mim, está lotado e o barulho é intenso. Sinto uma leve náusea. Um perfume adocicado muito forte mistura-se ao cheiro de fritura e à voz estridente da moça sentada ao meu lado. O rapaz que a acompanha a ouve entre resignado e abstraído, enquanto ela dispara todo um leque de assuntos irrelevantes. Não parece entender a complexidade do que está para acontecer.

 

Finalmente a luz se apaga. Ouço pela última vez a voz da mulher:

 

— Amor, o que vamos assistir?

 

— Olga, shhhhh, o filme vai começar...

 

telas  
ro druhens

Fez quinze anos e tomou uma decisão: viveria um grande amor!

 

Um par de sapatos de saltos altos, um batom cor de café com leite e um sutiã com enchimento de borracha eram as primeiras armas naquele arsenal de objetos letais. E um plano. Traçado nas tardes de um distante verão, nas páginas de um caderno espiral e resumido à listagem dos grandes amores que lhe visitavam os sonhos: Romeu e Julieta, Peri e Ceci, Rainier de Mônaco e Grace Kelly. E dispensou amores que não chegavam aos balcões e às varandas, às folhas de palmeiras, ao glamour de Hollywood, ao azul do Mediterrâneo.

 

Quando fez vinte anos decidiu que era o tempo do grande amor. Óculos de tartaruga, roupas pretas e nenhum sutiã eram as definitivas armas naquele laboratório de experimentações. E as fotos pregadas no painel de cortiça, montado no frio que ameaçava as manhãs de primavera.  Sartre e  Beauvoir,  Goddard e Anna Karina. E dispensou amores que chegavam ao som da marcha nupcial e cheirando a flor de laranjeira.

 

Fez trinta anos, decidindo que era o tempo do definitivo amor. Um par de diplomas, roupas de grife e perfumes franceses tornaram-se as armas que empunhava dia a dia, durante todos os dias daquele outono, enquanto o vento frio do entardecer espalhava as folhas onde escrevia nomes: Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Carmem e Don Jose... E renegou amores dissonantes, de colorido cotidiano.

 

Quarenta anos e o tempo de qualquer amor. Um par de olhos cansados, roupas largas e o cheiro do tempo perfumando as madrugadas de insônia e devaneio. E as lembranças coladas à pele como se fora uma segunda pele no inverno que a noite anunciava.

 

Ontem, fez cinqüenta anos.

 

 

 

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