edição 11 | outubro de 2006
lugar

 

6 poemas
valéria tarelho

pendant

há um par de
desejo migrante
cruzando uma ponte
— aparente —
que só existe
p(re)ênsil
entre nossos
extremos

[ pólos opostos
propensos a tanger
o centro ]
:
deletando
todas as vias
dilatando
todas as veias
acoplando
todos os poros
da distância

ponte-pendente
entre meus seios
pedintes
e os dentes [dantes]
da boca da noite


sedenta

 

 

 

 

siameses

somos os mais íntimos
os mais enigmáticos

mesclamos nossas peles
com a pleura da palavra
somos sílabas singulares
sem sofismas plurais

somos os mais cúmplices
parecemos os mais complexos
possuímos o mesmo álibi

o teu veneno é mel
o meu tanino é céu

meu e teu o suor sob
um sol de meia-noite
teu e meu o soro sobre
o húmus dos insones

só nosso
o endereço do segredo
confinado em um quarto
crescente
[fonte das sedes
foco das fomes
fólio de sucessivas mortes]

e mudos e desnudos
e completos
seguimos rumo
ao cimo do sigilo

pátria dos prazeres
secretos

solo do intraduzível

língua onde nós
nos confundimos

 

 

oz não é aqui

o tédio
[ tema batido ]
de todo dia

a taquicardia
[ velha amiga ]
do peito tísico

o trauma
[ antiga trama ]
dos medos de tranças

o tempo
[ a toque de valsa ]
tricotando detritos

sorrir para o sol
que sai de assalto
e entra em cartaz
:
truque [ frustrado ]
de aprendiz

[ tornado
possível
é só
um invento
over
the rainbow
]

 

 

rimbaudismo
(infinitivamente pessoal)

yes, veloso
a vida é real
e de viés
[c'est
la vie
]

vem fugaz
__________foge
[mais] veloz

fera voraz
focando
a presa frágil

yes, baby
eu sei que é assim
:
a vida urge
[quelque chose
rouge
]

surge insigne
__________foge
[plus] selvagem

"e irei longe
bem longe"
:
acima de sampa
ao topo de london
além do haiti

[dans un autre
monde
] sentir
o modo rimbaud
de "caexistir"

 

 

subliminar

o céu (sobre)
o chão (sob)
eu (sub)
urbana

enterrada
em neons
caos
shoppings
cinemarks
e parques
(sis) temáticos

 

 

 

 

bilhete de uma et

 

inadaptada 

ao mundo

que habito

saio de órbita

 

good bye

planeta azul

hasta la vista

humanidade

arrivederci

vida pragmática

 

comprei passagem de ida

para um tour

na via láctea

 

e.t.:

boa sorte para quem fica

talvez eu volte

de visita

 

 

 

 

hydra
virna teixeira

Nas margens da ilha, rochosa

           redemoinhos

de água

 

onde o monstro

marinho?

 

Havia um banco

de frente para o mar

Egeu.

 

A luz tênue

ao entardecer

outono

uma igreja deserta e a

fileira de casas, brancas

ao longe.

 

(tinha nove cabeças

a serpente)

 

...

 

Na colina, balidos

despertam

meus pensamentos.

 

As hidras internas

se recolhem.

 

Um pastor acena.

 

 

no céu e na terra
adriana versiani

plano de vôo

 

Deu no New York Times ou no Washington Post ou no Water Gate, ou no No Virus Found que:

dois aeronautas americanos, pilotando uma legítima aeronave americana desligaram os aparelhos e foram tomar café e falar abobrinhas e resolveram fazer outra rota legítima e inverter a lógica legitimada pelos padrões de vôo legitimamente americanos pois já que eram americanos legitimados e tinham esse direito e etc. conversaram em inglês e encostaram numa aeronave importada mas que flutuava pelos céus tupiniquins totalmente ilegítimos e irreconhecíveis pois tinha muita sombra formada por um montão de árvores que formavam uma imensa selva cheia de legítimos selvagens e, "coitadinhos", estão com seus passaportes apreendidos e correm muitos riscos em terra pois os macacos daqui são requintados e só comem hamburger já que esses são legitimamente americanos e na América as vacas não são loucas pois são legitimamente americanas e   aprendem uma língua estangeira desde criancinhas e deu no talk show que eles são bons são muito bons são bons demais são os the best e não têm nada a ver com isso. e daí?:   

 

 

 

centro geométrico da cidade  

 

 

{mulher feia pobre e fedida arrasta um cobertor encardido} 

 

Observação número 1: Há uma lógica urbana no pouso do urubu e no flanar do aeroplano.

 

Centro geométrico da cidade {ônibus quebrado, trânsito parado, asfalto, bandido} 

 

Observação número 2: Nem toda interferência artística de vanguarda atinge seus objetivos com sucesso, no centro geométrico da cidade. 

 

Centro geométrico da cidade {bêbados pedintes mancos falsos meninos banidos} 

 

Observação número 3: A miséria humana não é, necessariamente, uma praga urbana. 

 

Centro geométrico da cidade {obra monumental, cachorro morto, ódio contido} 

 

Observação final: Disparo olhar para todos os lados esperando encontrar beleza naquilo que vejo do centro geométrico da cidade.

 

 

 

Adriana Versiani (Ouro Preto-MG, 1963). Co-editora das publicações Dazibao. Foi co-editora da coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. Pertence ao conselho editorial da revista Ato. Publicou O barquinho pelo mar, A física dos Beatles e Dentro passa.

 

 

 

carta nômade
célia musilli

Na hora em que a noite se aquieta, no intervalo dos desejos dos que já partiram e de todos os que ficaram, reencontro a aventura. Essa é a hora em que me ponho a relembrar viagens. Vejo a extensão da terra encostando o céu, o horizonte retilíneo que faz do mundo um fio tênue, mas vasto e contínuo... Primavera do Leste, face da rosa-dos-ventos para onde soprou o destino e  onde ancorei meus beijos. Poema de Neruda. Carícia de plumas. Eu, território livre nos seus braços. Fui ao espaço novo, aquele que antevi num sonho, e aspirei seu pó com a paixão de um sol ardente.  Sim, cada cidade é um mundo. Ainda que no mapa ela seja uma metrópole, ainda que no mapa ela seja uma aldeia, sua geografia é uma veia aberta ao explorador. Cada cidade respira e aspirar o ar que nunca entrou em meus pulmões põe-me em contato com uma energia que abre no meu coração uma caixa de lembranças, onde guardo minhas pegadas.   Aqui, São Jerônimo é uma serra e um colar de maravilhas. Pequenas flores que se enfiam numa linha. Em bando, tiramos a roupa para mergulhar nas cachoeiras e as águas levam as maravilhas, rubis na correnteza, e nossos olhos pregados na procissão de flores pagãs. No Solimões não vi cidades. Mas uma civilização de palafitas. A linha das casas fica aos pés do rio. Crianças remam  para brincar na rua-rio, tão caudalosa, nos barcos que parecem de papel, mas são inusitada realidade. Líquida como eu nunca vi, animal terrestre que sou, nascida longe das águas, íntima da terra vermelha que engole a chuva com uma sede que nunca sobra para formar uma rua-rio, uma avenida liquefeita com crianças remando. Isso é coisa do velho Solimões.  

Jardim das delícias, as frutas pendem sob as cabeças em Belém, pomar onde se planta também concreto. Há pencas de casas e prédios, mas a visão deliciosa é das árvores e dos seus frutos nas ruas. Os jambos são vermelhos até que neles se cravem os dentes. A brancura da polpa expele um sumo doce  que escorre no meu queixo, eu deixo. Aparo nas mãos em concha, criança. E aquele cheiro de jambo deixa Belém no cio. Assim como eu fico quando perfilo palavras.

 

(Texto da série Cartas Sem Endereço) 

 

 

 

Célia Musilli. Poeta, jornalista. Vive em Londrina, Paraná. Publicou o livro de poemas Sensível Desafio (Londrina: Atrito Art Editorial, 2006). Edita o blogue homônio: Sensível Desafio.

 

 

pandora 
tânia diniz

Para Ana Carolina, primeira filha e chorona

 

O prédio onde morava tinha severos regulamentos, sendo um deles, o silêncio após as 22 horas. Ao apertar o dedo na porta com violência, quisera gritar de dor como louca. Correu ao armário, pegou sofregamente a caixinha que seu pai lhe dera em criança, e mais uma vez levantou ligeira a tampa, soltou o grito lá dentro e fechou-a rápido. Mais tarde, em crise de sonambulismo, abriu a caixa, e os gritos há tanto ali contidos ecoaram em tremendo berro, que quebrou as vidraças e correu pela noite como uma sirene, até cair numa boca-de-lobo e morrer-lhe na garganta. 

 

 

 

Tânia Diniz (Belo Horizonte-MG).  Poeta, contista, editora, promotora cultural, professora, editora-fundadora do mural poético Mulheres Emergentes, publicação trimestral de circulação internacional, em 1989. Publicou O mágico de nós (Contos, 1988/2ª ed., 1989), Rituais (Contos, 1997). Mulher EmBalada (Poemas, 1992), Bashô em nós (Poemas, co-autoria/1996), Relato de viagem à marmelada (Poemas, 1997), Flor do quiabo (Poemas, 2001). Tem trabalhos publicados em diversas antologias, revistas e jornais nacionais e estrangeiros. Recebeu vários prêmios em concursos literários no Brasil e exterior.

  

 

 

 

 

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