edição 10 | setembro de 2006
morte

 

réquiem
virna teixeira

onze meses depois:
uma pedra sobre o túmulo
 
reter apenas as
lembranças
 
necessárias

 

 

o chamado do cubismo
chris ritchie

Os anos solitários foram cheios de amor

e tardes ensolaradas.

Os anos solitários não foram silenciosos

nem vazios: uma multidão de vozes

os assombrava, estraçalhando meus nervos.

Esses anos me fizeram desejar

uma solidão mais bem acabada,

aquela à beira da desintegração total:

 

uma mão acenando,

um olho chamando,

lábios sorrindo

como um Picasso,

 

nem bem ali e nem aqui,

mas espalhada pelo oceano Pacífico.

Não ser é tão relaxante!

Nas próximas férias, é para lá que quero ir.

 

 

 

the call of cubism

 

The lonely years were full of love

and sunny afternoons.

The lonely years were not silent

nor empty: a multitude of voices

haunted them tearing my nerves apart.

The lonely years made me wish a more

accomplished solitude,

that one on the verge of total

desintegration:

 

                   one hand waving

                                                        one eye calling

                                      lips smiling

         very Picasso like

 

Not to be here nor there,

but scattered adrift in the Pacific Ocean...

Not to be is so relaxing!

That's where I wanna go on my last vacation.

 

 

 

 

Chris Ritchie: Nasci em Santos-SP, em 8/11/67. Mãe brasileira e pai escocês. Cresci na praia e, desde que aprendi, sempre gostei de escrever. Vim para São Paulo fazer Letras e mestrado em Literatura, ambos na USP, e aqui fiquei, morrendo de saudades do mar. Sou professora de inglês há 20 anos e há 5, gerente educacional em uma instituição de ensino.

 

 

 

10 anos
ivana arruda leite

De dez em dez anos acontece uma desgraça na minha vida. Uma bomba relógio com precisão terrorista. Sempre perto do meu aniversário, sempre nas datas redondas. A última foi o mês passado, quando fiz cinqüenta anos.

 

O telefone tocou e eu reconheci na hora.

 

- Quem está falando? - Luís perguntou sabendo que era eu.

 

- Com quem quer falar? - respondi sabendo que era ele.

 

- A Alzira, por favor.

 

- Não está me reconhecendo?

 

- Claro que estou, como vai? - assim mesmo, como se nos falássemos a toda hora.

 

De dez em dez anos Luís me procura.

 

- Os primeiros cinqüenta já se foram, - ele disse tentando disfarçar a emoção - agora só falta metade.

 

- Quem merece viver cem anos? - perguntei.

 

Ele insistiu num encontro. Eu não queria. O que ainda havia para ser dito?

 

 

Quando cheguei ao restaurante, ele já estava lá. Os cabelos mais brancos, as costas curvadas, Luís agora usava óculos. O mesmo homem elegante de sempre. Ele me abraçou e disse que eu não mudara nada nos últimos dez anos. Agradeci a gentileza e chamei-o de mentiroso. Sei bem o estrago que o tempo faz numa mulher. 

 

Todo orgulhoso, ele contou do filho, que é médico e mora nos Estados Unidos. 

 

- Fernando está com trinta anos, é cirurgião plástico. - De repente, tomado por uma vergonha repentina, mudou de assunto: - e você, ainda mora sozinha?

 

- Que jeito.

 

- Por que não arruma companhia? Sua casa é tão grande.

 

- Minha solidão preenche a casa inteira. Ela fica até pequena.

 

Luís deu risada do meu sarcasmo.

 

- Você precisa de alguma coisa? - quis saber antes de nos despedirmos.

 

- Eu estou bem, não se preocupe.

 

Dois dias depois, Fernando me ligou dando a notícia da morte do pai.

 

- Ele sabia que ia morrer? Estava doente? - talvez por isso tenha insistido tanto no encontro.

 

- Doença nenhuma. Papai estava forte como um touro.

 

 

Quanto tempo ainda viverei sem que o telefone toque e seja ele me dando os parabéns, achando que estou cada vez mais moça?

 

E eu que pensei que, depois da morte de Marcos, nada mais me abatesse.

 

 

Eu tinha quarenta anos quando perdi meu filho. Um caminhão entrou desgovernado no campinho de futebol e atropelou cinco meninos. Marcos foi o único que morreu.

 

Quando Luís ligou para me cumprimentar pelo aniversário (ele só liga nas datas redondas) ficou sabendo da morte do filho que ele nem chegou a conhecer. Nunca lhe contei quem era o pai.

 

Neste dia, eu me lembro, ele estava muito feliz. Fernando acabara de entrar na faculdade de Medicina.

 

 

Quando fiz trinta anos, Luís me procurou e nós nos tornamos amantes. O casamento dele com Maria Amélia não ia bem. "Você é a mulher da minha vida, a única que amei de verdade". Eu sempre soube disso. Nosso caso durou pouco. Terminamos sem que ele soubesse que eu estava grávida.

 

 

Aos vinte, quando pensei que ele fosse me pedir em casamento, casou-se com Maria Amélia. "Ela está esperando um filho meu, me perdoa".

 

 

Eu tinha dez anos quando Luís mudou-se para a minha rua.

 

 

 

 

Ivana Arruda Leite (Araçatuba-SP, 1951). Publicou Histórias da mulher do fim do século (contos, Editora Hacker, 1997), Falo de mulher (contos, Ateliê Editorial, 2002), Confidencial - anotações secretas de uma adolescente (juvenil, Editora 34, 2002), Eu te darei o céu - e outras promessas dos anos 60 (romance, Editora 34, 2004), Ao homem que não me quis (contos, Editora Agir, 2005). Participou, dentre outras, das antologias Geração 90:  os transgressores (Editora Boitempo, 2002) e Ficções fraternas (Editora Record, 2003). Tem contos publicados nas revistas: PS:SP, Ácaro, Coyote e Et Cetera. Escreve o Doidivana.

 

 

medusas e caravelas 
rita santana

Não sei quanto tempo ainda ficarei aqui diante do mar. Quero rever uma tonalidade de verde que eu vi um dia entre umas ondas, pois pretendo a felicidade, o contentamento, a leveza da cor envolta em águas. Queria ser a diluição daquele verde. A noite já manda seus carcereiros recolherem a rebeldia dos lilases, os espólios do sol poente, a confluência quente das tonalidades; e eu sei o que me espera mais além sem surpresa alguma; sei a noite que me toma assim como recolhe esta água-viva exposta ao sol, espraiando seu roxo por sobre a areia em longos fios que se perderão; esvai-se a água-viva pela areia - bolha quente e molhada derramando-se em ar e tinta fresca - afresco que não posso tocar. Toda, Inteira, Absoluta. Sem pena, gestos ou defesas. Enquanto eu me esvaio trôpega, desarticulada, debatendo-me entre as gentes vivas e ela, cheia de ar, ainda respira e ainda parece ter forças para o fundo da existência. Ela e eu em tentativas. Escorre-se ela em lilás sobre a margem de um papel demasiadamente branco. Ela e eu medusa e caravela.

Um estado de perdição vai invadindo lentamente a minha calma fingida, se apossando de mim; sinto estar tão sozinha no mundo, sem proteção, sem interlocutor possível que possa compreender meu infortúnio, meu desespero ainda brando. O turbilhão de imagens é perturbador. Sinto o silêncio das vozes que deixei de ouvir, das caras que deixei de ver durante esses anos de reclusão na relação com Otávio. E agora, buscar a quem? Sou e preciso bastar-me.

O pensamento se perde entre peixes desconhecidos que olham meus pés invadindo a poça d'água. Haverá tempestade no mar; o chumbo percorre o horizonte e o sol já vem abrindo uma clareira ao longe. Eu - sentada sobre pedras entre limo verde, água e meus mistérios - sinto as pernas doerem muito e temo não conseguir erguê-las na saída. Sinto tibieza nas pernas quando entristeço. Hoje rezarei o Pai Nosso às seis horas para ter forças. Há proximidade dos ponteiros.

Nunca imaginei misérias para mim. Sempre imaginei para mim os requintes da Fortuna, principalmente no palácio de Eros.

As lágrimas tomavam os seus olhos e se precipitavam na água. Havia confusão de raciocínios vindos com as ondas. Pensava nas suas contas pessoais, nos pais e no transtorno do trânsito naquele horário, final de tarde, de ônibus pela orla. As unhas ainda estavam grandes, não houvera tempo para cortá-las naquela manhã; pensou em ser daqui por diante uma mulher de unhas tratadas no salão, como Adéle; unhas pintadas, grandes... Subiria paredes assim. Pensou em alguns vizinhos que ela não sabia os nomes, e não sentiu remorso por não sabê-los. Não sentiria remorsos. Seria mais suave a travessia. Pensou no corpo e sentiu falta de suores. As lágrimas incontroladas assaltavam o seu rosto e o nariz inundava a boca com uma coriza insistente; as mãos de Maria Emília não tinham pressa em lavar tudo aquilo, pois sabiam que seria inútil. Dissipava-se. O vestido de tecido fino azul-marinho deixava entrever pelo decote, pela tira direita que teimava em cair, o seio mole de negra - e pálido - cortado por veias verdes que nunca se mostravam. A omoplata gritava em meio às carnes fartas da mulher, num contraste de ossos e redondezas ainda reinantes. O vento levava o tecido ainda seco do vestido e o corpo detinha o molhado. Luta entre o ar e a água, o corpo e o mundo; entre o refazer-se e o deixar-se; entre o corpo atingido pela dor e a alma que se libertava com o ar. Sentiu vaidade. Ficou feliz por continuar sentindo vaidade após tudo aquilo; estava viva então; sentiu vontade de rir e encontrar um olhar masculino admirando sua figura de mulher solitária à beira da praia.

Não aprendi das dores mais banais a sua naturalidade; tudo em mim funciona como o fim, o sem jeito; é incomensurável a dor de cada instante, cada gesto, cada não gesto. Devo partir. Pra qualquer parte. Não sei o que fazer, de fato, com a minha vida. Sempre me pesou demais a relação afetiva; não aprendi os trejeitos, as manobras; fugi, me debati e esbarrei-me no outro ao meu lado. E agora estou aqui diante do mar sem respostas; diante do meu destino sem certezas; diante da minha fraqueza querendo alguém pra dizer o caminho, a saída; diante da minha condição enferma de mulher sem fé, sem terços que amparem minha fragilidade milenar, minha existência de fêmea fraca, atemorizada diante da vida. Sou frágil, sou frágil, sim! E órfã! Como toda a gente humana. Se ao menos eu cresse... Talvez fosse menos só. Busco o mar e a solidão mais acesa; busco a mim mesma refletida nos raios mornos do sol indo; e ainda assim me sei inábil. Sei, uma outra me habita e faz planos audaciosos comigo. Sinto dor nos braços agora, uma espécie de formigamento, e olho o meu corpo como se estivesse assistindo a uma cirurgia, à dissecação da minha própria dor; sei que tudo isto vai passar; adormecerão os sintomas, a fúria, o rancor, o medo, tudo. Sei que passará, mas e aí? Começo a sentir frio; os dedos estão enrijecidos.

Tomaria das telas de novo. Pensou em ficar ali na noite que vinha, exposta à maré que encheria mais tarde e cobriria a pedra em que estava, cobriria parte por parte do seu corpo e ninguém no mundo sentiria sua ausência, seu desaparecimento; ninguém saberia tampouco das suas marcas ali, naquele fim de tarde, no ocaso do dia. Só mais tarde, no dia seguinte, certamente, sua família entraria em cena com todas as representações sentimentais. Pensou em beber uma água de coco antes de ir para o ponto de ônibus. Quis ser mais doce consigo mesma. Abandonou a pedra, a poça d'água, o musgo verde grudado por toda a extensão da praia e buscou inutilmente a água-viva. Sabia que deixara ali uma mulher que ela não encontraria novamente. Bebeu a água e sentiu-se mais aliviada; a garganta respirou melhor.

Aquela mulher entrando no ônibus e olhando fixamente para o cobrador, que se negava a aceitar suas moedas somente porque faltava um centavo, era Maria Emília. O olhar atacava o rapaz com acusações e iras. O olhar tornava-se cada vez mais arrogante até que resolveu pegar uma nota com valor muito superior ao preço da passagem e entregar-lhe. Olhou o jovem mal encarado como se estivessem num duelo. Ele, riso vitorioso, aceitou a nota e deu-lhe o troco. As lágrimas voltaram. Sentou-se. Se ele soubesse o quanto ela estava triste, cansada, precisando ser bem recebida pelo mundo; se ele soubesse que poderia ser violenta e até matá-lo com as unhas enfiadas em sua garganta porque ela morria quieta, em silêncio e suas unhas continuavam grandes. Era Maria Emília a mulher que se voltava toda para a janela e chorava vendo o mar. Precisava sentir regozijo pelo simples fato de estar viva, pelas pessoas da rua, do mundo, pelo azul infinito do céu e o verde daquele pedaço da praia, cintilante, desafiador aos olhos do cotidiano que a esperava novamente. Uma nova mulher teria que nascer com a dor. Uma mulher definitivamente consciente de sua condição. Forte.

O que teria de mim, homem? O que saberia sobre minhas estranhezas, meus calafrios noturnos quando eu saía do banho e não conseguia deter o tremor e pensava que seria a morte arrebatando em frio o meu corpo abandonado na quietude da casa? E o meu amor por Gerard Depardieu? Que sabia ele da minha dedicação filantrópica aos olhos de Chico Buarque? Que sabia Otávio da minha anemia desatada que eu ignorava há anos por preguiça de tomar o maldito sulfato ferroso? Nada. Que sabia eu de Otávio e o seu desejo por outras mulheres, suas fragilidades, seu amor, sua coragem? E ele, sobre os meus sonhos eróticos com outros homens? Os beijos? O que teria de mim, marcado, na natureza de Otávio? E eu? Que fiz para me fazer entender, conhecer, ser? Fui travando a língua, o corpo. Fui-me esquecendo que eu não era feliz. Fui adiando a avaliação, o enfrentamento. Faltava-me. Faltava-me. E agora eu o sabia. Eu tinha muitas sedes silenciadas. E pra quê? Acreditava que um casamento sempre traria insatisfações, mas que seria assim com qualquer um. Sem a felicidade, o que é possível fazer? Como detectar que não se é feliz? Como ser feliz? Não há vazios dentro da felicidade? Mas quem estaria pronto para preencher o formulário sem borrões?

Era chegada a hora da dor; a vida me protegera até aqui; sofrera poucos danos na carne nesses 33 anos; poucas foram as perdas; a saúde do corpo só permitira cólicas esporádicas e uma angústia profunda causada pela tensão pré-menstrual que me fazia lembrar de intensidades e do meu lado animalesco adormecido; nesses dias eu despertava pra minha condição passional; punha-me a desejar gentilezas e palavras; delicadeza e preâmbulos só dispensados às conquistas iniciais; punha-me a querer - eu tão afeita aos cometimentos da aceitação - punha-me a infelicidades ainda mudas, ainda resguardadas no meu silêncio bruto, cismado. O meu corpo reage querendo reproduzir, querendo gerar; o corpo protesta berrando em erupções que aniquilam a paz, a normalidade, a trivialidade rotineira. E minha consciência civilizada tenta ignorar os gritos do corpo. Quero produzir telas, mexer com tintas, manejar betumes, pincéis, trapos, agulhas, linhas, papéis, botões, misturas, barro, reciclagens; quero usar as mãos. Bobagem! Ele nunca soube dos meus pensamentos. Nunca atentou para os meus vasos pintados, nem para as minhas máculas. Sempre escondi de Otávio tudo que ele deveria desprezar em mim; exibia apenas minhas glórias, meus sentimentos nobres, minhas bondades plácidas. Ele não via. Eu, muitas vezes, achava Otávio ridículo, digno mesmo de pena. Eu pensava. Eu divergia em silêncio. Não aprendera a expor meus pensamentos. Às vezes tentava dar alguma opinião, ele não ouvia. Eu sempre fui uma voz invisível. Era chegada a hora de tomar decisões mais solenes, mais graves e decisivas. Era eu crescendo na casa dos trinta, envelhecendo a folha exposta ao vento. O mar e a noite e o vento frio me empurravam de volta para casa. O ônibus parou em frente ao prédio em que morávamos. O elevador parecia me levar para outra dimensão. A órbita nova me assustava.

A porta do apartamento me olhou durante alguns instantes. Não me queria de volta. Era a porta de Otávio. Senti que o primeiro desafio seria entrar. Resolvi encará-la de frente por alguns instantes e depois, sem tirar os olhos dela, tirei a chave da bolsa e invadi a fechadura. Empurrei-a. Já não era o apartamento que deixei, um pouco meu. Inóspitas paredes me atravessavam e os objetos perderam o calor e a cor de antes. A avenca pendurada próxima à janela parecia rogar meu colo, minha escolha. À mesa redonda de vidro, que me parecia enrugado, escolhida por ele, alguns papéis, contas, e uma eu me olhando ostensiva e séria. As cadeiras caídas como eu as deixei, e muito mais vermelhas. Otávio, eu vi em tantas coisas. Sentado no sofá como a querer diálogo, um pouco rindo da situação; outro Otávio louco se desesperava aos meus pés abrindo os braços a pedir volta. E o meu destino se abrindo em azul dizendo venha, vamos continuar. A televisão ainda ligada parecia uma nova entidade na casa, reveladora. Pensei que veria tudo de novo numa reedição especial do acontecimento. A urina derramada no tapete. Na cozinha Adéle nua tomava café com Otávio e Raul que quis me abraçar, mas acabou sentando novamente e sorrindo para os dois.

Imaginei encontrar Otávio dizendo-me: "É mentira, Maria Emília! É mentira!". Já era noite e tudo bem poderia ter sido apenas um conto, uma notícia, um sonho.

Assim acordara naquela manhã: invadida de pulsações, arremessada entre as pedras de um mar bravio; sentia o ar tornar-se cada vez mais rarefeito; o corpo era peixe revolto a nadar na areia; erguia os olhos buscando ajuda; e o que vinha era mão repleta de anéis; afogava-se falando, repetindo a frase. Acordara sufocada, quase sem conseguir pronunciar as palavras provocadas pelo sonho-pesadelo daquela hora:

- Preciso respirar, preciso respirar.

Bebera água - havia sempre água por perto, pois sentia muita sede durante a noite no verão - e levantou-se sonâmbula em busca de uma tesoura. Não conseguira cortar as unhas; na adolescência, usava-as grandes, hoje, aparadas rente à carne; um pouco por causa do nojo que Otávio tem de unhas grandes e por mim que não suporto o ritual de ir ao salão de beleza; não suporto pintá-las, pois me sinto menos apta para manuseios; cortando-as me sinto mais propícia à submissão, mais indefesa, não gosto da sensação. Pensara cortar as pontas dos cabelos a fim de ajudar no crescimento. Desisti mais uma vez e fiquei pensando na razão do desejo de cortar. Queria ouvir a voz de Otávio, mas era tão cedo e ele só ligaria bem mais tarde, provavelmente após a reunião com o grupo de micro-empresários venezuelanos. Há três dias ele viajara. Não sentira nenhum desejo de tomar o meu café da manhã. É a minha refeição preferida. Resolvi comer uma banana apenas em frente à tevê. O noticiário pela manhã era o menos agressivo, parecia conter mais silêncio, mais tempo e mais beleza. Sentira leveza de estar sozinha sem ritualizar o dia diante do outro; cuidaria das gavetas, dos papéis velhos, da organização paulatina da correspondência com os amigos distantes que restaram, de ficar quieta comigo mesma, afagada. Aproveitaria o restinho de férias para cuidar do meu universo pessoal.

Ligo a tevê e finalmente pego a tesoura com determinação. O noticiário chega veloz, num turbilhão de imagens. Cenas de guerras infindas, homenagens oficiais, empréstimos em bilhões para o subdesenvolvimento do meu País. Mais recheado de desespero que o convencional das manhãs. Penso nesse instante em que se atropelam notícias, que o meu pensamento não acompanha, no documentário sobre profissões que vi na sala de arte outro dia; penso naquele mineiro esperando encontrar diamantes redentores da sua miséria; penso nos dedos tratados e finos das donas dos anéis. Volto a pensar na dívida externa, naquela matéria sobre a riqueza mineral usurpada do país durante os séculos XVII e XVIII. Penso. As imagens prosseguem no séqüito das seqüências diárias das edições, e eu me deixo perder um pouco no meu ritmo, na assimilação, numa mastigação própria, lenta, como faço com os alimentos. A apresentadora sorri para a próxima notícia pitoresca sobre um jogador de futebol, esquecendo a cena de sangue anterior. Esqueço-me, esquentada pela velocidade das imagens que vêm, da pontuação, das regras e da tesoura. Coisas escapam enquanto o senso crítico tenta sobreviver ao pó, ao pulo do gato tecnológico, à informatização do globo. Aqui e ali, estou contaminada de imagens, atordoada com os astros que surgem e desaparecem como personagens de animação. A balança comercial ainda é um enigma; as eleições, os discursos, as ofensas americanas à honradez dos nossos dirigentes, os nossos dirigentes ofendidos, a mentira, a verdade, os discursos adequados ao momento, a mobilidade atenta aos números das pesquisas. O apresentador polido, a apresentadora tentando esconder um anel inadequado à apresentação do noticiário... Um nome, outro nome e eu olho atenta pra tela... O rosto dele, Otávio... O corpo de Otávio furtivo esgueirando-se para fugir dos jornalistas... Otávio! - eu grito; seguro a tevê como se quisesse reter o movimento da imagem. As palavras sucedem-se como num sonho; o tempo não existe e a compreensão, sempre dispersa, alarga-se diante da notícia. Acabou. Acabou. Já é outra nota. A apresentadora já sorri; eu seguro a tevê como se quisesse... Eu não quero; eu não sei. Eu? Eu. Maria Emília. Eu babo, babo e choro e sai de dentro de mim um grunhido fino, estranho; eu me mijo inteira tentando reter a urina, num átimo de lucidez e censura, mas já é tarde; estou entregue totalmente ao nada; não quero ver ninguém nunca mais. A imagem, o retrato daquela mulher, os nomes, os nomes! A notícia, a televisão, e eu babando; babando como faço quando gozo. Agora só havia a morte. Eu estava inserida violentamente para dentro do noticiário; expulsa da minha realidade; arregimentada para a virtualidade da distância das cenas. Sabia-me inteiramente viva, acesa, atingida. Era eu mais uma imagem a contaminar o meu universo turbulento de cenas. Eu babava e chorava, ajoelhada diante da tela. O tempo em que fiquei ali eu não sei. O casal dá o "tenham um bom dia, aproveite bem o seu dia" e me deixa sozinha na sala, impossibilitada de reeditar o programa, apertar o botão de controle e reter a imagem de Otávio, do meu Otávio fugindo dos repórteres, dos fotógrafos; Otávio escondendo-se amedrontado, mudo, tentando esconder o rosto ao mesmo tempo em que me olha, me busca e tenta escapar do meu olhar, tenta esconder o rosto. Quero matá-lo e protegê-lo dos jornalistas ferozes. A manchete teria sido: "traição acaba em tragédia ou sócios dividem os negócios e a mulher, ou ainda: viagem de negócios revela infidelidade; mulher morre após transar com o sócio do marido; triângulo amoroso acaba em morte". Não sei. Vi, naquele momento em que o pensamento foi arrebatado pra notícia, Otávio fugindo; a imagem da piscina onde os três tinham estado antes da tragédia; a suíte do hotel onde Otávio estava acomodado e em companhia de Adéle no momento do flagrante. As palavras desapareceram tão rápido do aparelho. Era mais uma notícia, e eu ali, refazendo todo o texto dito e o não dito. Raul, percebendo a ausência demorada de sua mulher, saíra a sua procura por todo o hotel antes de chegar à porta do quarto de Otávio. Meu Deus! Raul ouve os gemidos tão conhecidos, seus. O quebra-cabeça de anos de convivência se formando inteiro diante daquela porta. Meu Deus, Raul! E eu aqui esperando o retorno do meu amor, torcendo para que a viagem à Venezuela fosse um sucesso. Vejo os olhos de Adéle, sempre tão sorridentes, arregalarem-se diante das batidas explosivas de Raul na porta, nos gritos estúpidos de Raul, na sua dor que é minha agora, nossa dor. Os corpos amantes nos traindo, se amando. Os corpos e as cenas, agora mais que suspeitas, óbvias; as brincadeiras, olhares, tudo envolvido no agora. O meu ciúme, minha flacidez, minha subjetividade lassa, culpas, dedicação, o meu amor estúpido, meus zelos excessivos, minha vontade de ser inteira. O desespero dela diante do flagrante, tentando escapar, tentando fugir pela sacada do quarto; tentando apagar aquela cena; arrependida, amedrontada, assustada; aquele homem dentro do quarto imóvel, lívido, incapaz de ser dela, de salvá-la, de protegê-la; aquele homem que não era o seu companheiro, mas o seu amante. Apaixonado? Ele seria apaixonado por Adéle? Estariam tramando uma união permanente? Quanto tempo juntos? E os móveis que trocaríamos quando ele voltasse? A morte determinando o fim de tanta coisa. O corpo de Adéle ali, caído, morta. E eu sinto pena, raiva, ódio, inveja, dor, calafrio, nojo, prazer de vingança, prazer e vergonha de ser a fiel; a vítima do outro lado da história; prazer e vergonha por ser a santa; por ser assim: prazer e vergonha. Achava que era uma mulher muito atenta aos sinais. Parece esquisito, mas uma mulher sabe de coisas sem que elas existam, ela intui antes que sejam, ela cheira antes do vapor subir; uma mulher é bicho louco. Um olhar denuncia; uma simples hesitação revela; o disfarce forçado, palavras ditas ao léu; um pensamento que escapa num sorriso a mulher é capaz de ler. Eu sempre fui assim. Essa capacidade de ler o que não pode, nessa verdade de cada um ser fato oculto, jamais explícito, nem quando se diz a verdade, pois a verdade se revela no outro de acordo com o seu desejo de camuflagem, de verdade que se quer revelada. Mas vem essa sensação de estar equivocada, louca, obstinada; vem a sensação de estar fazendo julgamentos sujos, e danosos para a paz do espírito. Um verdadeiro inferno, as leituras do não dito, do silêncio, do olhar. Comecei a ignorar minhas intuições, ajudada por Otávio que me dizia, aborrecido: "você e essa mania de ver demais", você está ficando louca, Maria Emília! Comecei a desprezar todas essas leituras. Mas sempre foi tão óbvia a inveja de Adéle com o nosso relacionamento; aquele cruzar de pernas deixando entrever a parte mais profunda da coxa; o dia em que saiu enfezada lá de casa após a minha revelação de que estávamos estudando a possibilidade de uma gravidez. Maria Emília não aprendera nada! Nada! As dores mais primitivas, o ódio, o desejo de vingança, o querer ir imediatamente trepar com o primeiro que aparecesse, a sanha de fêmea traída. A dor dilacerava qualquer conteúdo assimilado de sabedoria. Maria Emília viu-se traída. Não foi fácil escolher o amor. E, sobretudo, não foi fácil definir aquela espécie de formatação amorosa.

Sempre quis que Otávio lesse aquela entrevista de Sartre, que eu guardo há anos, sobre a incomunicabilidade e a verdade. Sempre quis discutir isso com ele, mas ele sempre fugiu do assunto, não tinha paciência pra filosofia, dizia, e eu contra-argumentava que não, era vida, era necessário... Talvez se ele entendesse quem eu era, minha verdade, talvez se eu soubesse verbalmente que ele precisaria me trair e mentir...

Abro a janela e me assusto com o mar diante de mim, imenso como a noite varrendo o espaço; olho como se fosse nova a sua existência ali. O acesso era habitado por grandes pedras. Nunca tínhamos ido àquela praia. Otávio dizia: nem tente! Só tem maconheiro e ladrão! E eu aqui, Otávio, com você! Segura, feliz e sem entorpecentes, senão a cegueira. E você se sentindo melhor que aquele rapaz negro, sem camisa, com um menino nos braços. E eu me sentindo melhor que a namorada dele, linda, que vai com um biquíni minúsculo pra praia todo dia, e lhe dá beijos e deve até trepar com ele por ali. Quem é melhor? Ela ou eu - ambas negras - com minha reputação imaculada e meus desejos mortos, calados, sepultados vivos? Eu e minha atração por filosofia e minha ignorância diante de mim e de você. Meu adorável Otávio Augusto! Muito prazer, moça maconheira. Muito prazer rapaz que trepa com a namorada atrás das pedras e carrega um menino nos braços. Muito prazer mar onde morei até aqui. Muito prazer e adeus pedras que nunca cruzei por medo dos meninos, homens, mulheres que não eram os nossos. Em que me transformei? Talvez se eu tivesse ido várias vezes até ali, do outro lado do edifício, teria me encontrado com um jovem sem camisa disposto a me ensinar segredos valiosos da existência.

Agora Maria Emília faz as malas. Silenciosa, sem lágrimas. Está cansada. Amanhã bem cedo, antes de partir, irá àquela praia e tomará um banho. Procura nas gavetas a velha revista com a entrevista de Sartre e vai recortando pedaços da memória. O telefone toca. Começa a chover. As palavras vêm vindo diante dos seus olhos e diante de sua natureza pronta e disposta a seguir. As folhas amareladas da revista e os olhos da mulher.

J.P.S.:Eu penso que cada um deveria poder dizer, numa entrevista, o mais profundo de si. Para mim, o que vicia as relações entre as pessoas é que cada um conserva, na relação com o outro, alguma coisa de oculto, de secreto, não necessariamente para todos, mas para aquele com quem ele fala no dito momento. Penso que a transparência deve substituir sempre o segredo, e penso muito no dia em que dois homens não terão mais segredos entre si porque eles não mais o terão para ninguém, porque a vida subjetiva, assim como a objetiva, estará totalmente aberta, dada. É impossível admitir que mostremos nosso corpo como fazemos, e que ocultemos nossos pensamentos, considerando que, para mim, não há diferença de natureza entre o corpo e a consciência.

E ainda é preciso saber do amor de Simone por Algren. Tenho tanto a fazer. A tesoura olha minhas mãos. As unhas.

 

 

 

Rita Santana (Ilhéus-BA, 22/08/1969). Atriz, escritora, professora licenciada em Letras pela UESC. Ganhou o Braskem de Literatura para autores inéditos em 2004, com o livro de contos Tramela, pela Fundação Casa de Jorge Amado. Em 2005, participou da coletânea de prosa e poesia Mão Cheia com quatro escritoras baianas. Em 2006, lança Tratado das Veias, livro de poesia do selo As Letras da Bahia. Vive em Lauro de Freitas, Bahia.

 

 

 

 

dois contos 
sandra baldessin

pela fresta do olhar

 

Eu vi quando ele acariciou a própria garganta com a lâmina, vi os olhos dele e, digam o que disserem depois, eram olhos tranqüilos, daquela espécie de tranqüilidade que os homens demonstram quando pensam que decidiram alguma coisa, quando se entendem no controle, os tolos. Riscou de leve o pescoço e imediatamente se formou uma bela gargantilha vermelha. Examinou-a na frente do espelho e, por descuido, encontrou o próprio olhar refletido. Vi os rubis se desprendendo do pescoço, gotejando, brilhantes, contra o fundo branco da pia. Ele ali, perdido na própria mirada. A cantiga, acho que o esperava oculta no olhar, começou a escorrer da sua garganta: "Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, para o meu, para o meu amor passar...".  

 

A sua voz não me impediu de ouvir os passos na escada. Ah, ele também escutou o toc-toc dos saltos na madeira. O som da chegada daquela que caminha sobre as pedrinhas de brilhantes. Certo, foi o som que o fez lembrar que já estava morto mesmo. O cinzel de lapidar rubis descobriu o segredo da sua carne e a melodia não estava lá, apenas o seu aroma, denso, quente. Da cor do grito dela, da dona do toc-toc. Ela me olhou como quem pede explicação, os rubis se dissolvendo sob seus pés. Não lhe direi nada. Os gatos também não têm todas as respostas.

 

 

 

 

devaneios com egon

 

 

Ele me olha e avisa que vai me pintar. Os olhos, febris, analisam os meus ossos. Eu anuncio que minha carne se lê com as mãos, e sorrio. Penso em Egon, que ele, claro, não conhece. Morrerá aos vinte e oito anos?

 

Quero lhe falar sobre Schiele, e me cubro, já assumindo ares didáticos. Desnuda! Ele me ordena, e se assusta. Desnuda? Seja. Emudeço.

 

Ele abre as janelas e ajoelha-se ao lado da cama, misturando cores. As mãos, tintas de azuis e vermelhos, se mudam para o meu corpo. Na tela de nácar se nomeia o meu silêncio: caminhos-dentro que não percorri.

 

Suas mãos nomearão o que se abriga em minhas entranhas? Meu corpo tocado tocante tocata vai se cumprindo a cada pincelada desferida por seus dedos. Egon, eu te batizo. Ele me enterra as unhas nas coxas.

 

Foi assim que eu descobri que ele me possuía. A mim, que desejei metabolizá-lo como a coisa viva que era; fazê-lo meu semelhante, coisa de carne e sangue da qual eu podia me apropriar. Ah, que longa a jornada antes desse lúcido momento! De repente percebo que, sim, estará morto aos vinte e oito anos.

 

 

 

Sandra Baldessin. Escritora, arte-educadora e consultora em Comunicação Escrita; realiza oficinas de formação de agentes de leitura; oficinas de criatividade e liberação de linguagens criativas com base na educação sensível; é contadora de histórias e realiza, também, oficinas de terapia literária. Em 2003, lançou A cidade: espaço de vivência cultural, ensaio abordando os cenários culturais da cidade de Rio Claro/SP; em 2001, publicou À flor do verso, coletânea de poemas. Está terminando de preparar mais três livros, a coletânea de contos Capitus?, os poemas da coletânea A vingança dos objetos e Didática do desejo, uma abordagem sobre como despertar o prazer pela leitura, fundamentado nas experiências das oficinas.

 

 

 

 

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