edição 10 | setembro de 2006
morte

 

aroma das gardênias: uma fotografia
jussara salazar

O amor comeu minha paz e minha guerra.

Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão.

Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça,

meu medo da morte.                             

                                    (João Cabral de Melo Neto)

  

 

Vestiram-se para a foto. Ele, distinto em um paletó preto gravata borboleta lenço na lapela e os óculos, aros fininhos. Didi em um vestido com botõezinhos e plissê, brincos em forma de coração vermelho com pedrinhas ao redor um trancelim de ouro com medalhinha e cabelos curtos muito curtos, repartidos à la garçonne. Olham para o infinito.

Um dia ele morreu.

Didi vestiu-o pela derradeira vez igual à foto, cobriu o caixão com cravos brancos depois vestiu-se de preto.

Quis enlouquecer mas na semana seguinte ele voltou, contou tudo.

Não se habituara muito com aquela vida de morte.

— Que brincadeira é essa?

E estava ele de volta. Viviam assim em núpcias.

Às vezes ele não vinha. Ela caía numa tristeza de dar dó. Dia seguinte ele surgia novamente em frente ao portão, corado e bem disposto. Didi perdeu a conta de quantas vezes ele morreu de quantas viveu talvez a vida toda.

O tempo passou. Chegou o dia em que ela Didi, também resolveu que ia morrer. Elegante, despediu-se de todos, deitou no caixão.

Estava linda vestido branco, pulseira dourada e um véu bordado com minúsculas borboletas rosadas cobrindo o corpo antigo.

As matas se incendiaram fogo fátuo.

As folhas do caderno de anotações voaram atravessadas pelo calor do vento volando as cortinas de seda.  

 
 
 

 

ano novo, vida viva

(Uma fábula)
mariza lourenço

 

"Muitos riam da transformação que se operara nele, mas pouco lhe importava o riso dos outros, pois bem sabia que nunca neste mundo se fizera alguma coisa boa que não fosse acolhida com sorrisos por certos homens, e tinha suficiente senso para perceber que nesses tais, cegos por sistema, o riso é uma doença, ainda assim das menos repelentes". Charles Dickens

 

 

 

Desenganada pelos médicos, ela que tratasse de aproveitar a vida, porque dias não lhe restavam muitos.

 

Quedou-se num mutismo absoluto, logo ela, tão moça ainda, cumpridora fervorosa dos mandamentos, que vivia de ajudar os pobrezinhos e nunca freqüentara leito alheio.

 

Que destino mais besta. 

 

Às dúvidas, que jamais seriam satisfeitas, seguiram-se revolta, dor e, finalmente, o desejo subversivo de fazer planos para um futuro inexistente e, de ponta-cabeça, quebrar todos os espelhos, empanturrando-se de azar pelo que ainda lhe restava de vida. Se a castidade não lhe garantira longevidade, que morresse mal-falada. Deixou a bíblia de lado, pendurou o terço no guarda-roupa, encurtou as saias, decotou todas as blusas, às escondidas bebeu do vinho consagrado, mastigou o pão que era da igreja e, delícia das delícias: comungou sem confissão. Aos olhares incrédulos dava de ombros. Às reprimendas respondia com palavrões. Nunca fora tão popular.

 

Certo dia, porém, coincidentemente, o último do ano, sentiu-se cretina e exausta. Era a morte que se aproximava. Preparou a própria mortalha, do guarda-roupa retirou o velho terço, abriu o evangelho e esperou que sua hora chegasse. E chegou, estranhamente parecida com ela mesma. Talvez fosse sempre assim, para derradeiro conforto dos moribundos, que a Morte lhes buscasse com cara conhecida:

 

— Pronta?

 

— Sim, mas antes, eu...

 

— Maria Alice, não tenho tempo! 

 

— Maria Alice? Não me chamo Maria Alice... Sou Teresinha.

 

— Ora, me enganei de novo. Ando cansada.

 

— Isso significa o quê? Que não vou morrer? Ai, Jesus!

 

— Alegre-se. Quem, como você, ante a perspectiva do fim pôde mudar tudo? Ou viver duas vidas em uma só?... Situação atípica. Moça de sorte.

 

— Mas o que eu faço daqui pra frente? Afinal, o erro foi seu!

 

A Morte lhe sorriu, impaciente:

 

— Só me faltava essa... Ensinar alguém a viver.

 

Deixou que a Morte fosse embora e, pela segunda vez, quedou-se muda, pensando no que faria para o resto de seus dias que, agora, lhe pareciam muitos: "Que vergonha, meu Deus. Nunca mais hei de sair às ruas."

 

E quem resiste à entrada de um novo ano? Ela, que vivera todas as faces da mesma moeda, que deixara de ser títere, para comandar as próprias alegrias e tristezas, por certo, não resistiria.

 

Tão logo a passarada anunciou a chegada da aurora, a jovem convenceu-se de que não teria quarta chance. Livrou-se da mortalha e, nua, como criança recém-parida, saiu ao sol. 

 

A vida, que sempre lhe metera medo, parecia-lhe agora um gostoso movimento de xadrez.

 

Ela que aprendesse a jogar.

 

 

 

 

eterno retorno  
roberta silva

Pode-se dizer que estive cativa desde sempre, não é certo, porém. Num momento, que não mais distingo entre as coisas, poucas, que ainda sei reais, estive viva. Agora não me importa saber deste instante, da mesma forma obcecada que desejei saber distante, se era meu o dedo no gatilho ou o que apontava.  

 

Por longo período fui somente um deles. Era como se revivendo, revivendo, revivendo aquele ato eu própria me acolhesse em um tenro regaço. Fingi, no princípio nem precisei, que não era eu ali lambendo as próprias feridas e sim, tu. Imensamente, amargamente, eternamente arrependido e apaixonado.  

 

Minha dor ali, minha morte ali tão perto e tão tua excitava-me a ponto de eu revivê-la vez após outra. Tua morte minha.  

 

Depois foi escapando-me aquele gozo por entre os dedos. E, compreenda, para não morrer precisei estar em teu lugar, matar ou morrer, não me lembro, ver-me ali por teus olhos. Por teus olhos me vi e eu morria molhada. Choraste. Choraste? Não importa. Quão doces foram aquelas primeiras vezes. Matava-me ou a ti rapidamente só para ver-me morrer como que afogada de teus olhos. Não durou também.  

 

Tu e eu agora somos nada. Sem gozo, sem culpa, sem perdão. Nada somos acompanhados. Não me vou de ti e nem me deixas por não sabermos ser algo sós.

 

 

 

 

roteiro
ro druhens

o epílogo

 

Era uma manhã fria para um domingo de carnaval. Chovia quando ela acordou. Virou-se pro lado e o beijou no ombro. Ele sorriu dormindo e estendeu os braços. Abriu um olho só. Mais tarde, a cama desfeita e os travesseiros pelo chão, ele pediu um chá. 

 

— Acho que acordei com azia, dá um chá pra mim?

— Chá de que?

— De qualquer coisa.

 

E seu sorriso era uma careta engraçada. Em dez minutos ela voltou com o chá e ele já estava morto.  

 

 

o encontro 

 

Seis anos antes haviam se encontrado em um botequim, no balcão de cafezinho, no centro da cidade. Papo furado em hora de rush e temporal. Quando decidiram atravessar as poças, dividiram um guarda-chuva. Um táxi. Um jantar mais longe, perto da casa dela. A cama dele e o café da manhã seguinte. Quando se despediram pela primeira vez sabiam que muitos seriam os cafés da manhã e os jantares.  

 

Já sabiam que muitos seriam os temporais.  

 

 

o tempo 

 

Durante seis anos se encaixaram. Ela foi à churrascaria e ele dormiu cedo. Ela ficou bêbada e acordada por toda a madrugada e ele escreveu poesia. Souberam de si mesmos e isso os bastava. Vezes houve em que se estendiam as mãos, sem se olhar, e o sentimento que invadia o espaço mudava o rumo da rotina dela, da bagunça dele. As mãos dele no rosto dela, no corpo dela. As mãos dela no corpo dele, no rosto dele. 

 

Ela aprendeu a gemer e a gritar. Ele aprendeu a esperar.  

 

 

o prólogo 

 

Qualquer coisa. Foram as últimas palavras que ela o ouviu dizer. E depois de falar tanto, por seis anos: qualquer coisa. Dali pra frente tudo poderia ser qualquer coisa. Fosse pra onde fosse, viesse quem viesse, tudo seria qualquer coisa. Ela, sua vida, seus quereres. 

 

Tudo requentado e servido como um chá de qualquer coisa.

 

 

 

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